domingo, 5 de julho de 2009

Dia de Portugal, de Camões



Fotos da Exposição Temática alusiva às Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.


O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo,
“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse,
“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrego, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”

Fernando Pessoa

#######################

NOITE

Milhões de barcos perdidos no mar!
Perdidos na noite!
As velas rasgadas de todos os ventos
Os lemes sem tino
Vogando ao acaso
Roçando no fundo
Subindo na vaga
Tocando nas rochas!
E quantos e quantos naufragando…

Quem vem acender faróis na costa do mar bravo?
Quem?!

Manuel da Fonseca

#######################

E O BOSQUE QUE SE FEZ BARCO

Já o meu país foi uma flor de verde pinho.
País em terra. (E semeá-lo uma aventura).
Depois abriu-se o mar como um caminho.
Depois o bosque se fez barco e o barco arado
Dessa nova e fatal agricultura:
Colher no mar o fruto nunca semeado.

Manuel Alegre

#####################

Linda Inês Inês de Manto

Teceram-lhe o manto
Para ser de morta
Assim como o pranto
Se tece na roca

Assim como o trono
E como o espaldar
Foi igual o modo
De a chorar

Só a morte trouxe
Todo o veludo
No corte da roupa
No cinto justo

Também como o choro
Lhe deram um estrado
Um firmal de ouro
Um corpo exumado

O vestido dado
Como a choravam
Era de brocado
Não era escarlata

Também de pranto
A vestiam toda
Era como um manto
Mais fino que roupa.

Fiama Hasse Pais Brandão

###################

Fala apócrifa de Camões

É inútil buscarem o meu signo
procuram-me em ruas ou retratos
sequer em grutas gritos manuscritos
muito menos em fósseis ou falsas

pistas que de meus ossos não existem
É inútil julgarem-me comparsa
De quem quer que julgue viver comigo
Já que em lugar algum terei passado

comigo mais que um prazo muito exímio
mais ambíguo aliás e mais escasso
que o vivido com Bembo ou com Virgílio

com Petrarca Ariosto ou Garcilaso
Só estes os contei por meus amigos
E só de astros que tais rompe o meu rasto

David Mourão-Ferreira

#####################

Gruta de Camões

Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta
Cujo silêncio ainda escuta
Os teus gestos e os teus passos.
Aí, diante do mar como tu transbordante

De confissão e segredo,
Choraste a face pura
Das brancas amadas
Mortas tão cedo

Sophia Mello Breyner Andresen

##########################

Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós. sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.


Jorge de Sena


###################

CAMÕES NÁUFRAGO

Cedendo à fúria de Neptuno irado
Soçobra a nau que o grão tesouro encerra;
Luta coa morte na espumosa serra
O divino cantor do Gama ousado.

Ai do Canto mimoso a Lísia dado!...
Camões, grande Camões, embalde a terra
Teu braço forte, nadador aferra
Se o Canto lá ficou no mar salgado.

Chorai, Lusos, chorai! Tu morre, ó Gama,
Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo
Coa dextra o mar a lusa fama.

Almeida Garrett

#####################

Glosa de Camões

Até que no tempo cesse anónimo
O ténue sopro que ao tempo dou.
Até que o tempo oblitere o vestígio
leve que sobre o esquecimento paira
e mais não é que fino e branco
pó na brancura calcinada,
até que o tempo olvide a voz
que nele teimosa tece e enreda
a frágil teia e triturando o som
em eco fruste me converta
e insatisfeito ainda reduza o eco
a muda vibração silente,
da cinza escura tornarei por quem
de viver triste sou contente.

Rui Knopfli

#######################

Falso retrato de Camões

Era Camões? Faltava-lhe um dos olhos,
Tinha a barba completa,
O laurel do poeta
A gola aos folhos.

As mãos, não nas mostrava:
Trazia numa a espada? Noutra a pena?
(E a tuba? E a avena?
E o rolo de papeis salvo da onda brava?)

Era um busto, uma efígie, um cartaz de parede.
Era um livro fechado,
Escrito na poeira do passado.
Fonte interdita de nenhuma sede.

Era isto, era aquilo, era o que quis
Quem no quis inventar
Expulso de si próprio, a desprezar
Pela flor, a semente e a raiz.

Estava ali para servir de escudo
(E ele, a espada!),
Para dizer cultura celebrada
(E ele, mudo!).

Estava ali para servir de réu.
(Não, não estava ali:
Estava em quem, por amor, o chamou para si
E o leu).


António Manuel Couto Viana

##########################

A LUÍS DE CAMÕES

Sem lástima e sem ira o tempo arromba
As heróicas espadas. Pobre e triste
Á tua pátria nostálgica voltaste,
Ó capitão, para nela morrer
E com ela. No mágico deserto
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Que tudo o perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana Mutação) na tua Eneida lusitana.


Jorge Luís Borges

########################

Camões

Nem tenho versos, cedro desmedido,
Da pequena floresta portuguesa!
Nem tenho versos, de tão comovido
Que fico a olhar de longe tal grandeza.

Quem te pode cantar, depois do Canto
Que deste à pátria, que to não merece?
O sol da inspiração que acendo e que levanto
Chega aos teus pés e como que arrefece.

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.
Chamar-te herói, é dar-te um só poder.
Poeta dum império que era louco,
Foste louco a cantar e louco a combater.

Sirva, pois, de poema este respeito
Que te devo e confesso,
Única nau do sonho insatisfeito
Que não teve regresso.

Miguel Torga

#####################

Luís, homem estranho

Luís, homem estranho, que pelo verbo
és, mais que amado, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascente, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.

És a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dar de todos os homens, musical,
na voz de órfico acento, peregrina.

Que pássaro lascivo se intercala
no queixume subtil de tua estrofe
e não se sabe mais se é dor, delicia,
e espinho, afago, e morte, renascença?
Volúpia de gemer, e do gemido
destilar a canção consoladora
a quantos de consolo careciam
e jamais a fariam por si mesmos ?
(Amaldiçoado dia de nascer
que em bênçãos para nós se converteu!)
já tenho uma palavra pré-escrita
que tudo exprime quanto em mim se turva.

Pelos antigos e pelos vindouros,
foste discurso de geral amor,
Camões – oh som de vida ressoando
em cada tua sílaba fremente
de amor e guerra e sonho entrelaçados!


Carlos Drummond de Andrade

#######################

Luís, o poeta, salva a nado o poema

Era uma vez
um português
de Portugal.

O nome Luís
há-de bastar
toda a nação
ouviu falar.

Estala a guerra
e Portugal
chama Luís
para embarcar.

Na guerra andou
a guerrear
e perde um olho
por Portugal.

Livre da morte
pôs-se a contar
o que sabia
de Portugal.

Dias e dias
grande pensar
juntou Luís
a recordar.
Ficou um livro
ao terminar.

muito importante
para estudar:
Ia num barco
ia no mar
e a tormenta
vá d'estalar.

Mais do que a vida
há-de guardar
o barco a pique
Luís a nadar.

Fora da água
um braço no ar
na mão o livro
há-de salvar.

Nada que nada
sempre a nadar
livro perdido
no alto mar.

_ Mar ignorante
que queres roubar?
A minha vida
ou este cantar?
A vida é minha
ta posso dar
mas este livro
há-de ficar.

Estas palavras
hão-de durar
por minha vida
quero jurar.
Tira-me as forças
podes matar
a minha alma
sabe voar.

Sou português
de Portugal
depois de morto
não vou mudar.

Sou português
de Portugal
acaba a vida
e sigo igual.

Meu corpo é Terra
de Portugal
e morto é ilha
no alto mar.

Há portugueses
a navegar
por sobre as ondas
me hão-de achar.

A vida morta
aqui a boiar
mas não o livro
se há-de molhar.

Estas palavras
vão alegrar
a minha gente
de um só pensar.

À nossa terra
irão parar
lá toda a gente
há-de gostar.

Só uma coisa
vão olvidar
o seu autor
aqui a nadar.

É fado nosso
é nacional
não há portugueses
há Portugal.

Saudades tenho
mil e sem par
saudade é vida
sem se lograr.

A minha vida
vai acabar
mas estes versos
hão-de gravar.

O livro é este
é este o canto
assim se pensa
em Portugal.

Depois de pronto
faltava dar
a minha vida
para o salvar.

Almada Negreiros

########################

Camões, grande Camões

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar c'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage

#########################

Camões e a tença

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.

E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.

Este país te mata lentamente.


Sophia de Mello Breyner Andresen

#############################

Poema para Luís de Camões

Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.

José Saramago

############################

Dia da Raça

Não vejo medalhas,
nem marchas militares.
Vejo mil soldados
na rua a passear...
Vejo mil famílias
que passam, comendo
coisas e tremoços
- Como ia dizendo
tudo se passou
na Praça do Império
Mas quanto à-vontade
nos rostos serenos!

E como não sou
presente ou pretérito
regressei a casa
nem que sim ou pós...
Não vejam na frase
nenhuma malícia.
Eu sou duma raça
futura na História.
E proclamo, enquanto
bebo vinho verde:
Avante, meu povo!
Canta a «Portuguesa»!
Agora repouso,
relembrando os dias.
Releio Camões,
repenso os Lusíadas.

Ruy Cinatti

#######################

Camões

Falam de
Camões como falaram os
que desconheciam a poesia
Produzem cristais baços do passado
usam Camões como um nome perdido
a poesia não pode ser motivo
de júbilo aos que a
traem
Camões não é um túmulo perdido
num passado senil: Que não o cite
em vão quem desconhece
que cita um nome vivo.

Gastão Cruz


Estavas, linda Inês, posta em sossego

«Um, caso triste aconteceu então, um caso de infelicidade e crueldade, mas que mostra quanto é sincero e terno, sendo forte e corajoso, o coração dos Portugueses…
«Tinha D. Afonso IV um filho, D. Pedro, rapaz alegre e destemido, que gostava muito de uma dama da Rainha D. Inês de Castro.
«Em Coimbra, numa quinta a que mais tarde se deu o nome de Quinta das Lágrimas – pelos trágicos acontecimentos que lá se deram – vivia em sossego a linda D. Inês.
«Ora o Príncipe não podia casar com uma senhora qualquer, mas só com uma Princesa de sangue real. Assim o exigiam nesse tempo os usos e normas da corte. Se Pedro não os cumprisse, não o deixariam talvez ser rei.
«Por isso, muito se afligia D. Afonso, vendo o filho tão preso dos encantos de D. Inês não querendo casar-se com nenhuma Princesa verdadeira.
«Aconselha-se o Rei com os sues ministros – e resolve tirar a vida à pobre D. Inês, cujo único pecado e crime era amar o seu príncipe.
«Vão buscá-la a Coimbra e trazem-na arrastada à presença do Rei.
«Apertando muito ao peito os filhinhos que tinha de D. Pedro, Inês chora, geme, pede e suplica piedade, não para ela, mas para os filhos, que, ficando órfãos, que perdendo a mãe, tudo perderiam. Roga a D. Afonso que antes a exile para um deserto, mesmo entre feras bravas, mas que não roube o seu amor às criancinhas que traz ao colo, inocentes de todo o mal e toda a culpa…
«Ainda se comove o rei, mas não se comovem os conselheiros.
«Demais a mais, ela era castelhana, e o povo não gostava das mulheres vindas do país, cujo povo tinha sido e era seu inimigo. Uma rainha castelhana era coisa que não queriam os Portugueses; mas, se tivessem visto Inês chorar e abraçada aos filhos, decerto lhe teriam perdoado…
«Os ministros é que não perdoavam… Arrancam das espadas de aço fino, e trespassam o seio da formosa Inês.
«Mas, assim que ela morreu, chorou-a todo o povo, até a choraram os seus mais cruéis inimigos, tão nova e bonita era a apaixonada de D. Pedro …


Barros, João deOs Lusíadas contados às crianças. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 2003, pp. 62-65.

Recolha Colectiva





Em prisões baixas fui um tempo atado

Em prisões baixas fui um tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que coisa era viver ledo.

Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo.

Luís de Camões

*************************************

Verdes são os campos

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.


Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luís de Camões

*************************************
Qual tem a borboleta por costume

Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agore se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aónia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

Luís de Camões

*********************************************
Senhora minha, se de pura inveja

Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,

Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!

Luís de Camões

**********************************

Se quando vos perdi, minha esperança

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.

De cousas de que apenas um sinal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memórias perseguido.

Ah dura estrela minha! Ah grão tormento!
Que mal pode ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que é já passado?

Luís de Camões


Recolha de Manuel Silva

****************************************
Eu cantarei de amor tão docemente

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís de Camões

************************************

Acha a tenra mocidade

Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já não o vejo;
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está receitando a morte!

Luís de Camões

**************************************

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
Se mais há de perder quem mais alcança!

Mas dou-vos esta firme segurança:
Que, posto que me mate o meu tormento,
Pelas águas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A glória que em sofrer tal pena sentem.

Luís de Camões

************************************

Males, que contra mim vos conjurastes

Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto há de durar tão duro intento?
Se dura, por que dure meu tormento,
Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assim porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais pode a causa dele, em que o sustento,
Que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção com minha morte
É de acabar o mal destes amores,
Dai já fim a tormento tão comprido.

Assim de ambos contente será a sorte:
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.

Luís de Camões

***************************************

Porque quereis, Senhora, que ofereça

Porque quereis, Senhora, que ofereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.

Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente Amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.

Assim que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura, mas deveis-ma
Por ser capaz de tantos desfavores.

E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual convosco mesma,
Vós só convosco mesma andai de amores.

Luís de Camões


Recolha de Olga Pereira

***************************************
Ditosa Ave

Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder um bem que tinha,
Não sabe mais que cousa é ser contente!

E quem fosse apartando-se da gente,
Ela por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ela também a que ela sente!

Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo,
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!


Luís de Camões


****************************************

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

Luís de Camões

*************************************

Coitado! que em um tempo choro e rio

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

Luís de Camões

*********************************

Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


Luís de Camões

************************************

Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: − Mais servira, senão fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões

Recolha de Luís Pereira

*******************************************











De quem o mesmo Amor não se Apartava

Já a roxa e clara Aurora destroçava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com cristalino orvalho borrifava;

Quando o formoso gado se espalhava
De Sílvio e de Laurente pelos prados;
Pastores ambos, e ambos apartados
De quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Lactente,
− Não sei − dizia − ó Ninfa delicada,
Porque não morre já quem vive ausente,

Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sílvio: − Amor não o consente,
Que ofende as esperanças da tornada.

Luís de Camões

**************************************

Tomou-me vossa vista soberana

Tomou-me vossa vista soberana
Aonde tinha as armas mais à mão,
Por mostrar que quem busca defensão
Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão;
Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
Que contra o Céu não vale defensa humana.

Mas porém, se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que posto que estivesse apercebido,
Não levais de vencer-me grande glória;
Maior a levo eu de ser vencido.

Luís de Camões

*************************************

O fogo que na branda cera ardia

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
O fogo que na branda cera ardia,

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.

Luís de Camões

************************************

Quando me quer enganar

Quando me quer enganar
A minha bela perjura,
Pera mais me confirmar
O que quer certificar,
Pelos seus olhos mo jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por eles,
Imagina o pensamento
Que se faz agravo a eles
Não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais
Ando já visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ela jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então, vendo-lhe ofender
Uns tais olhos como aqueles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pela não constranger
A jurar falso por eles.

Luís de Camões

*******************************************


Em amor não há senão enganos

Suspiros inflamados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão cedo;
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Leteo vos percais.

Escritos para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),

Dizei-lhe que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não há senão enganos.

Luís de Camões

Recolha de Isaura Pereira

*********************************************
Amor, que o gesto humano na alma escreve

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.

Luís de Camões

*****************************************

Quantas vezes do fuso se esquecia

Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de um áspero receio
Salteado Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curara o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavam, de mágoa, a piedade):

Como pode a desordem da natura
Fazer tão diferentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?

Luís de Camões

*************************************

Se me vem tanta glória só de olhar-te

Se me vem tanta glória só de olhar-te,
ă pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.

Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!

Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.

Luís de Camões

**************************************

Entre estes penedos


Verdes são as hortas
com rosas e flores;
moças que as regam
matam-me d'amores.

Entre estes penedos
que daqui parecem,
verdes ervas crecem,
altos arvoredos.
Vai destes rochedos
água com que as flores
d'outras são regadas
que matam d'amores.

Co a água que cai
daquela espessura,
outra se mestura
que dos olhos sai:
toda junta vai
regar brancas flores,
onde há outros olhos
que matam d'amores.

Celestes jardins,
as flores, estrelas,
horteloas delas
são uns serafins.
Rosas e jasmins
de diversas cores;
Anjos que as regam
matam-me d'amores.

Luís de Camões

Recolha de Ricardo Pinto

***************************************
Vencido está de amor

Vencido está de amor
O mais que pode ser
Sujeita a vos servir e
Oferecendo tudo

Contente deste bem,
Outra vez renovar
A causa que me guia
Ou hora em que se viu

Mil vezes desejando
Com essa pretensão
Tão estranha, tão doce,

Voltando só por vós
Jurando não seguir
Sem ser no vosso amor

Meu pensamento
Vencida a vida,
Instituída,
A vosso intento.

Louva o momento
Tão bem perdida;
A tal ferida,
Seu perdimento.

Está segura
Nesta empresa,
Honrosa e alta

Outra ventura,
Rara firmeza,
Achado em falta.
Luís de Camões

************************************

Quem presumir, Senhora, de louvar-vos

Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
Com humano saber, e não divino,
Ficará de tamanha culpa dino
Quamanha ficais sendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,
Por mais que raro seja, e peregrino:
Que vossa fermosura eu imagino
Que Deus a ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
Em posse pôr de prenda tão subida,
Como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
Que, pois mercê tamanha me fizestes,
De mim será jamais nunca esquecida.

Luís de Camões

*****************************************

Bem Sei, Amor, que é Certo o que Receio


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus danos às escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?

Luís de Camões

**********************************************

Sempre a Razão vencida foi de Amor

Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

Luís de Camões

******************************************

Posto me tem Fortuna em tal estado

Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís de Camões


Recolha de João Fernandes

*********************************************











Repouso na alegria comedido

Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra um paraíso;
Entre rubis e perlas, doce riso,
Debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se pode por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;

Fala de que ou já vida, ou morte pende,
Rara e suave, enfim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido:

Estas as armas são com que me rende
E me cativa Amor; mas não que possa
Despojar-me da glória de rendido.


Luís de Camões

*****************************************

Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algu~a cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões

**********************************************


Se pena por amar-vos se merece

Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razão, que entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida se oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando
Contínuo vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.

Luís de Camões

****************************************

Passo por meus trabalhos tão isento

Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga c'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o sofrimento.

Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.

Luís de Camões

*****************************************

Jurando de não Mais em Outra Ver-me

Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrágio cruel saindo a nado,
Só de ouvir falar nele está medroso;

Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire sossegado;
Mas esquecido já do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;

Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.


Luís de Camões


Recolha de Elisabete Fernandes

***************************************************
A verdura amena

Se Helena apartar do
campo seus olhos,
nascerão abrolhos.


A verdura amena,
gados, que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
faz flores de abrolhos
o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
faz claras as fontes:
se isto faz nos montes,
que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas
como ervas em molhos,
na luz de seus olhos.

Os corações prende
com graça inumana
de cada pestana
ü alma lhe pende.
Amor se lhe rende,
e, posto em giolhos,
pasma nos seus olhos

Luís de Camões

*************************************

Canção II


Se este meu pensamento,
como é, doce e suave,
de alma pudesse vir gritando fora,
mostrando seu tormento
cruel, áspero e grave,
diante de vós só, minha Senhora,
pudera ser que agora
o vosso peito duro
tornara manso e brando.
E eu que sempre ando
pássaro solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto,
pintara meu tormento e vosso gesto.

Pintara os olhos belos
que trazem nas mininas
o Minino que os seus neles cegou;
e os dourados cabelos
em tranças de ouro finas
a quem o Sol seus raios abaixou;
a testa que ordenou
Natura tão fermosa;
o bem proporcionado
nariz, lindo, afilado,
que a cada parte tem a fresca rosa;
a boca graciosa
– que querê-la louvar é escusado –,
enfim, é um tesouro:
os dentes, perlas; as palavras, ouro.

Vira-se claramente,
ó Dama delicada,
que em vós se esmerou a Natureza;
e eu, de gente em gente,
trouxera trasladada
em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
de vossa condição,
Senhora, não dissera,
por que se não soubera
que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
«Porque morres?» dissera, respondera:
«Mouro porque é tão bela
que inda não sou pera morrer por ela».

E se porventura,
Dama, vos ofendesse,
escrevendo de vós o que não sento,
e vossa fermosura
tão baixo não descesse
que a alcançasse um baixo entendimento,
seria o fundamento
daquilo que cantasse
todo de puro amor,
por que vosso louvor
em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse
a causa pelo efeito, minha dor
diria ali sem medo:
«quem me sentir verá de quem procedo».

Então amostraria
os olhos saudosos,
o suspirar que a alma traz consigo,
a fingida alegria,
os passos vagarosos,
o falar, o esquecer-me do que digo;
um pelejar comigo,
e logo desculpar-me;
um recear, ousando;
andar meu bem buscando,
e de poder achá-lo acovardar-me;
enfim, averiguar-me
que o fim de tudo quanto estou falando
são lágrimas e amores;
são vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,
palavras com que iguale
com vossa fermosura minha pena;
que em doce voz de fora
aquela glória fale
que dentro na minh' alma Amor ordena?
Não pode tão pequena
força de engenho humano
com carga tão pesada,
se não for ajudada
dum piadoso olhar, dum doce engano
que, fazendo-me o dano
tão deleitoso e a dor tão moderada,
que enfim se convertesse
nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos
à pena vêm pequenos,
não queiram de ti mais, que dirás menos.

Luís de Camões

**********************************************

Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

**************************************

Aquela triste e leda madrugada

Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando à terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas

Luís de Camões

***************************************

Olhos em que estão mil flores


Olhos em que estão mil flores
e com tanta graça olhais,
que parece que os Amores
moram onde vós morais.


Vêm-se rosas e boninas,
olhos, nesse vosso ver;
vêm-se mil almas arder
no fogo dessas mininas.
E di-lo hão minhas dores,
meus suspiros, e meus ais;
e dirão mais, que os Amores
moram onde vós morais.

Luís de Camões

Recolha de José Augusto Gaspar

*************************************

O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

Luís de Camões

************************************
Está o lascivo e doce passarinho

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Com pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no Estígio Lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava,
(Posto que já de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

Luís de Camões

***************************************


Lembranças, que lembrais meu bem passado

Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.

Luís de Camões

***************************************

Que me quereis, perpétuas saudades?

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões

*******************************

Somente se Queixa de Amorosas Esquivanças


Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porquinha que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem um coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís de Camões

Recolha de Jorge Silva

*********************************************


Onde acharei lugar tão apartado

Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.

Luís de Camões

**************************************************


Quem pode livre ser, gentil Senhora

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.

Luís de Camões

***************************************

No mundo quis o Tempo que se achasse

No mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha;
E, por exprimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho.

Luís de Camões

***************************************

No tempo que de amor viver soía*

No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n'um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!

Luís de Camões

*Soía: era costume

**************************************

Perdigão perdeu a pena

Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.


Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a u~a alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.

Luís de Camões



Recolha de Manuel Mendes

***************************************

Lembranças saudosas, se cuidais

Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado,
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere dele muito mais.

De longo tempo já me costumais
A viver de algum bem desesperado:
Já tenho co'a Fortuna concertado
De sofrer os tormentos que me dais.

Atada ao remo tenho a paciência
Para quantos desgostos der a vida;
Cuide quanto quiser o pensamento.

Que pois não posso ter mais resistência
Para tão dura queda, de subida,
Aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.

Luís de Camões

*******************************

Com grandes esperanças já cantei


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar, porque cantara;
e agora choro já, porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas, que passara,
tenho pola mor mágoa, que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente!

Luís de Camões

****************************************

Tanto de meu estado me acho incerto

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar u~a hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões

*************************************

Se tanta pena tenho merecida

Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,
Fé bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.

Luís de Camões

**********************************

Esparsa

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Recolha de Sílvia Moreira

**********************************************

Amor, co'a esperança já perdida

Amor, co'a esperança já perdida
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrágio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que mais queres de mim, pois destruída
Me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de render-me, que não sei
Tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui vida, alma e esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Enquanto o quis aquela que eu adoro.

Nelas podes tomar de mim vingança;
E se te queres ainda mais vingado,
Contenta-te co'as lágrimas que choro.

Luís de Camões

***********************************

Do Tempo que Fui Livre me Arrependo


O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com uma rara e angélica figura
A vista da razão me salteava.

Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,

Deixei-me cativar; mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.


Luís de Camões

***********************************


Num bosque, que das Ninfas se habitava

Num bosque, que das Ninfas se habitava,
Sibela, Ninfa linda, andava um dia;
E subida nũa árvore sombria,
As amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava
A vir passar a sesta à sombra fria,
Num ramo arco e setas, que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira
Para tamanha empresa, não dilata;
Mas com as armas foge ao moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.

Luís de Camões

******************************

Se somente hora alguma em vós piedade

Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentira,
Amor sofrera, mal que eu me partira
De vossos olhos, minha saudade.

Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausência é de mentira;
Porém venho a provar que é de verdade.

Ir-me-ei, Senhora; e neste apartamento
Lágrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.

Desta arte darei vida a meu tormento,
Que, enfim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.

Luís de Camões

****************************************

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões


Recolha de Sidónio Augusto Vieira

************************************








Endechas a Bárbara escrava


Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões

***********************************


Nunca em amor danou o atrevimento

Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida cobardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A Estrela nele encontra que lhe é guia;
Que o bem que encerra em si a fantasia,
São u~as ilusões que leva o vento.

Abrir-se devem passos à ventura;
Sem si próprio ninguém será ditoso;
Os princípios somente a Sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura;
Perderá por cobarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.

Luís de Camões

************************************

Doces lembranças da passada glória

Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz uma hora,
Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma larga história
Deste passado bem, que nunca fora;
Ou fora, e não passara: mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.

Luís de Camões

**************************************

Depois que quis Amor que eu só passasse


Depois que quis Amor que eu só passasse
Quanto mal já por muitos repartiu,
Entregou-me à Fortuna, porque viu
Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que ele só me reduziu,
O que para ninguém se consentiu,
Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplário para a gente
Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!

Luís de Camões

*************************************

Julga-me a gente toda por perdido

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.

Luís de Camões


Recolha de Arnaldina Moreira

1 comentário:

  1. Pois è !Se não existe uma professora com a nossa nada disto era possivel !!!!
    Obrigada por tudo !!!!!!!!!!!!

    ResponderEliminar