segunda-feira, 13 de julho de 2009

Dependências - Tabagismo

ÁLCOOL, FUMO E CAFÉ

Não mais o álcool,
não mais o fumo,
de azulado rumo,
nem o café.
Resta-me a fé
num áureo aprumo.
Não me consumo.
Sei como é.

Os nervos cansam
e vão partir-se.
A voz de Circe
ouço-a ainda...
E, mais mais linda,
ainda me chama,
e, embora lama,
quero-lhe ainda.

Mas quero quietos
os meus sentidos,
comprometidos
em ascensões.
As sensações
hei-de chamá-las,
purificá-las
com comunhões.

Resto sedento,
desalentado. . .
Quem a meu lado
no funeral?
Negro portal
hei-de quebrá-lo.
Cantar de galo
sobre o coval.

(As mãos daquela
que se dizia
tão minha amiga
já se sumiram...
Vagas sorriram
outras derrotas...
Ignotas rotas
as poluíram...)

E as tardes brancas
hei-de esposá-las.
Não quero galas
na minha boda.
Bailem em roda
só as crianças
ingénuas danças
à sua moda.

Se um homem cumpre
o seu destino,
não vão sem tino
mexer na obra.
É como a cobra
que fere o seio
quem, de permeio,
altera a obra.

De qualquer forma
sigo o meu rumo,
num áureo aprumo,
cheio de fé.
Sem o café,
sem o tabaco,
cortar o opaco
sei como é.


Dias, Saul - Obra Poética.Porto, Brasília Editora, 1980, pp. 52-54




VÍCIO DE FUMAR

Dentro de um milhão de anos,
ou talvez pouco menos compreendas
que fumando assisti ao trânsito dos dias
e em círculos de fumo percebi palavras de ternura.

Então descobrirás que havia coisas simples,
rostos, pedras e pernas
quebrando a frialdade das manhãs
e um mundo que era de homens, bichos, crianças.

Então talvez entendas
porque passei fumando as curvas dolorosas,
porque fumando escrevi poemas
e a fumar testemunhei a crueldade.

Mesmo que nada digas – e mais vale o silêncio –
mesmo que nada faças, mesmo que te comovas,
– na distância de fumo a separar-nos – sentirás
onde era o coração, um peso ou uma lágrima?

Onde eram os lábios uma dor ou um fumo
que deixei nos cafés, que entreguei nos beijos,
que guardei, inútil património, nas gavetas com contas.

Então calcularás quantas foram as vezes
em que falei com Deus, em que estive sozinho,
quantos crimes inúteis pratiquei,
quando fui anjo sem o perceber.

Na tua solidão, procurarás nos bolsos um cigarro
e não o fumarás.

António Rebordão Navarro, Amanhã

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