sexta-feira, 10 de julho de 2009

Grandes Mestres




A marquesa agora com a idade de 30 anos, estava bela, embora de formas delicadas e de uma excessiva fragilidade. O seu maior encanto provinha de uma fisionomia cuja calma revelava uma surpreendente anímica. O seu olhar, cheio de brilho, mas que parecia velado por um pensamento constante, acusava uma vida febril e uma resignação ilimitada. As suas pálpebras, quase sempre pudicamente descidas, raramente se erguiam. Se lançava olhares em torno de si, fazia-o com um movimento triste e dir-se-ia que reservava o fulgor dos seus olhos para ocultar contemplações. Deste modo, todo o homem superior se sentia curiosamente atraído para esta mulher serena e silenciosa. Se, por um lado, o espírito procurava adivinhar os mistérios da perpétua reacção que nela se produzia do presente para o passado, a alma, por outro lado, não estava menos interessada em se iniciar nos segredos de um coração que, de qualquer modo, se sentia orgulhoso dos seus sofrimentos.
*Balzac, Honoré de A Mulher de Trinta Anos. Mem-Martins: Europa-América, s/d, pág. 87.

Recolha de Ricardo Pinto

Nota:
Romancista francês, Honoré de Balzac nasceu em Tours a 20 de Maio de 1799 e faleceu em Paris a 18 de Agosto 1850.

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CAPÍTULO V

O Conselho da Lagarta


A Lagarta e Alice ficaram a olhar uma para a outra, durante algum tempo, em silêncio; por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-lhe a palavra, com voz arrastada e sonolenta.
- Quem és tu? – perguntou a Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu muito cautelosamente:
- Eu… eu agora já nem sei… mas pelo menos sei quem era quando me levantei esta manhã, mas acho que depois disso já mudei muitas vezes.
- Que queres dizer com isso? – exclamou a Lagarta, desabridamente. – Explica-te!
- Acho que não me posso explicar – disse Alice – porque eu não sou eu, estás a perceber?
- Não compreendo – disse a Lagarta.
- Parece-me que não sou capaz de o dizer mais claramente – replicou Alice, com muita delicadeza – porque eu também não entendo muito bem e não sei por onde começar; e ter tido tantos tamanhos diferentes num dia só, é muito confuso.
- Não é nada – disse a Lagarta.
- Bom, talvez ainda o não tivesses descoberto – disse Alice –, mas quando te transformares em crisálida… E um dia isso há-de acontecer, sabes… e a seguir em borboleta, penso que vais sentir-te um bocado esquisita, não achas?
- Nem nada – disse a Lagarta.
- Bom, talvez os teus sentimentos sejam diferentes – disse Alice –; tudo o que sei, é que, para mim, seria muito esquisito.

*Carroll, Lewis - Alice no País das Maravilhas. Porto: Público, 2004, pp.39-40

Recolha de Elisabete Fernandes

Nota:
Escritor inglês, Lewis Carroll nasceu em Cheshire a 27 de Janeiro de 1832 e faleceu em Guilford a 14 de Janeiro de 1898.

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Valentine soltou um grito.
- Estive na casa de Monte Cristo à uma hora, falamos, ele da mágoa que a sua família experimentou, e eu do seu pesar, quando uma carruagem entrou no jardim de entrada. Nunca, até àquele momento, depositei qualquer confiança em pressentimentos, mas agora não posso deixar de acreditar neles, Valentine. Arrepiei-me ao som da carruagem. Cedo ouvi passos nas escadas, que me aterrorizavam tanto quanto os do capitão aterrorizavam D.Juan. A porta abriu-se finalmente, Albert de Morcerf entrou primeiro, e comecei a ter esperança que os meus receios fossem em vão, quando, atrás dele, entrou outro jovem, e o conde exclamou:
«-Ah, aqui está o barão Franz d'Epinay!
«- Chamei a toda a minha força e coragem para me ajudar. Talvez tenha empalidecido,mas decerto que sorri. E saí cinco minutos depois, sem ouvir uma única palavra que se tinha dito.
-Pobre Maximilian! - Murmurou Valentine.



*Dumas, Alexandre (Pai)O Conde de Monte-Cristo. Porto: Público, 2004, p. 224

Recolha de Sílvia Moreira

Nota:
Romancista francês, Alexandre Dumas (Pai) nasceu em Villers-Cotterêts a 24 de Julho de 1802 e faleceu em Puys a 5 de Dezembro de 1870. O seu filho, também chamado Alexandre Dumas (Paris, 27 de Julho de 1824-Marly-le-Roi, 27 de Novembro de 1895) veio a tornar-se, igualmente, um romancista muito apreciado, tendo escrito obras famosas como "A Dama das Camélias" e "Os Três Mosqueteiros".

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CAPÍTULO I



Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo
D. Quixote de la Mancha



Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não
há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.
Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais das ceias restos de carne picada com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos ainda somenos, lentilhas às sextas-feiras, algum pombito de crescença aos domingos, consumiam três quartos do seu haver. O remanescente, levavam-no saio de belarte,calças de veludo para as festas, com seus pantufos do mesmo; e para os dias de semana o seu bellori do mais fino.
Tinha em casa uma ama que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço da poisada e da porta a fora, tanto para o trato do rocim, como para o da fazenda.
Orçava na idade o nosso fidalgo pelos cinquenta anos. Era rijo de compleição, seco de carne, enxuto de rosto, madrugador e amigo da caça.



*Cervantes, Miguel deD. Quixote de la Mancha. Porto: Público, 2004, p. 15,

Recolha de Manuel Mendes

Nota:
Romancista, poeta e dramaturgo espanhol, Miguel de Cervantes nasceu em Alcalá de Henares a 29 de Setembro de 1547 e faleceu em Madrid a 23 de Abril de 1616.

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Capítulo 24

De novo em casa


A tia Em acabava de sair de casa para regar as couves, quando levantou os olhos e viu Dorothy correr na sua direcção.
- Minha querida menina! – gritou, envolvendo-a nos seus braços e cobrindo-lhe o rosto de beijos. – Mas donde é que vens?
- Da Terra de Oz – disse Dorothy solenemente. – E aqui está o Totó, também. E oh, tia Em! Estou tão feliz por estar de novo em casa!
*Baum, FrankO Feiticeiro de Oz. Porto: Público, 2004, p. 157

Recolha de Arnaldina Moreira

Nota:
Escritor norte-americano, Frank Baum nasceu em Nova Iorque a 15 de Maio de 1856 e faleceu em Hollywood a 6 de Maio de 1919.

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Capítulo I

Miragens

Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro, na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu tenho de afugentar a melancolia e regularizar a circulação. Sempre que na minha boca se desenha um esgar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comigo a deter-me involuntariamente em frente das agências funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sempre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia deliberada de arrancar metodicamente os chapéus a todos os transeuntes, nessa altura, dou--me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, calmamente, embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.
*Melville, HermanMoby Dick. Porto: Público, 2004, p.5,

Recolha de Olga Pereira

Nota:
Escritor, poeta e ensaísta norte-americano, Herman Mellville nasceu em Nova Iorque a 1 de Agosto de 1819 e faleceu na mesma cidade a 28 de Stembro de 1891.

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V

A MÃE


Não julgo que haja no mundo nada mais risonho do que as ideias que acordam, no coração de uma mãe, a vista do sapatinho de seu filho; sobretudo se é sapato de festa, dos domingos, do baptismo, o sapato bordado até quase na sola, um sapato com o qual a criancinha ainda nem deu nem um passo. Esse sapato tem uma graça e pequenez, é-lhe tão impossível andar, que para a mãe é o mesmo que ver o filho. Sorri-lhe, beija-o, fala-lhe: a si se pergunta se pode efectivamente haver um pé tão pequenino; e, a criança embora ausente, basta-lhe o lindo sapato para lhe pôr sob os olhos a doce e frágil criatura. Julga vê-la, vê-a inteira, viva, alegre, com as mãos delicadas, a cabeça redonda, os lábios puros, os olhos serenos onde o branco é azul. Se é de Inverno ela lá está, arrasta-se sobre o tapete, escala laboriosamente um tamborete e a mão treme que ela não aproxime o fogo. Se é de Verão, arrasta-se pelo pátio, pelo jardim, arranca a erva entre as pedras, olha ingenuamente para os grandes cães, os grandes cavalos, sem medo, brinca com as camélias, com as flores, e faz ralhar o jardineiro que encontra a areia nos canteiros e a terra nas ruas. Tudo ri, tudo brilha, tudo folga à roda dela, como ela, até ao sopro do ar e ao raio do sol que se divertem à porfia nos travessos anéis dos seus cabelos. O sapato tudo isto mostra à mãe e faz-lhe fundir o coração como o fogo a cera.
Mas, quando se perdeu o filho essas mil imagens de alegria, de encanto, de ternura, que se estreiam à volta do sapatinho, tornam-se outras tantas coisas horríveis. O lindo sapato bordado não é mais do que um instrumento de tortura que esmaga eternamente o coração da mãe. E sempre na mesma fibra a vibrar, a fibra mais profunda e mais sensível, mas em vez dum anjo que a acaricia é um demónio que a belisca.

*Hugo, VictorNossa Senhora de Paris. Porto: Público, 2004, pp. 216, 217.
Recolha de Isaura Pereira

Nota:
Escritor e poeta francês, Victor Hugo nasceu em Besançon a 26 de Fevereiro de 1802 e faleceu em Paris, 22 de maio de 1885.

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- Já leu alguma vez a velha profecia da janela da Biblioteca?
- Sim, muitas vezes – gritou a menina a olhar para cima. – Conheço perfeitamente. Está pintado com umas curiosas letras negras e quase ilegível. Só tem seis versos:


Quando uma menina de ouro vencer
O pecado dos lábios que o proferem
Quando a velha amendoeira florir
E uma menina, com as lágrimas, a regar
Toda a casa ficará na paz
Há tanto esperada pelos Canterville

Mas não sei o que querem dizer.


*Wilde, Oscar O Fantasma de Canterville. Porto: Público, 2004, p. 27

Recolha de Manuel Silva

Nota:
Escritor irlandês, Oscar Wilde nasceu em Dublin a 16 de Outubro de 1854 e faleceu em Paris a 30 de Novembro de 1900.

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Capítulo XI

PHILEAS FOGG ARRANJA UM MEIO DE TRANPORTE CURIOSO A UM PREÇO INACREDITÁVEL


O comboio saiu pontualmente da estação. Entre os passageiros encontravam-se diversos militares, funcionários do estado e traficantes de ópio e índigo, cujo negócio os havia atraído para a costa oriental.
Passepartout viajava na mesma carruagem do seu amo e um outro passageiro ocupava o lugar em frente.
Era Sir Francis Cromarty, um dos parceiros de whist do Sr. Fogg no Mongólia, que ia juntar-se ao seu destacamento em Bernares.
Sir Francis Cromarty era francês e era um homem alto e elegante na sua casa dos cinquenta anos, que se tinha distinguido na última revolta de Sepoy. Ele fez da Índia o seu lar, fazendo apenas curtas visitas a Inglaterra muito espaçadamente. Estava tão familiarizado com os costumes, história e carácter da Índia e do seu povo quanto os próprios indígenas. O Sr.Fogg que considerava não estar propriamente em viagem de lazer, mas sim cumprindo um itinerário, não mostrou qualquer interesse em questioná-lo acerca destes assuntos.


*Verne, JúlioA Volta ao Mundo em 80 dias. Porto: Público, 2004, p. 65

Recolha de João Fernandes

Nota:
Escritor francês, Jules Verne (aportuguesado para Júlio Verne) nasceu em Nantes a 8 de Fevereiro de 1828 e faleceu em Amiens, 24 de Março de 1905.


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Capítulo I

Naquele belo condado da ridente Inglaterra, banhado pelo Don, estendia-se outrora uma imensa floresta. Esta cobria a maior parte das montanhas e dos vales que se encontravam entre Sheffield e a encantadora cidade de Doncaster.
Aí se travaram algumas das mais sangrentas batalhas da Guerra das Duas Rosas; aí ainda se acoitaram esses bandos de foragidos, esses outlaws de quem as velhas canções inglesas popularizaram as proezas. Tal é o lugar onde se passa a nossa história, durante os últimos anos do reinado de Ricardo I, na hora em que o regresso do príncipe era desesperadamente desejado pelos seus súbditos oprimidos por todos os males que uma tirania pode conceber.
Depois da conquista da Inglaterra por Guilherme, quatro gerações não haviam sido suficientes para misturar o sangue dos vencedores com o dos vencidos, nem para fundir pela identidade da língua e dos interesses duas raças inimigas, das quais uma conservara todo o orgulho do triunfo, e a outra sofria gemendo a humilhação. A derrota de Hastings havia posto todo o poder nas mãos da nobreza normanda, e esta não o tinha usado com moderação. Salvo um muito pequeno número de excepções, a raça dos príncipes e dos nobres saxões tinha sido aniquilada ou espoliada, e bem raros eram os que, na terra de seus pais, possuíam ainda alguns magros domínios.


*Scott, WalterIvanhoe. Lisboa: Ed. Verbo, 1985, p.5

Recolha de Sidónio Augusto Vieira

Nota:
Romancista escocês, Sir Walter Scott nasceu em Edimburgo a 15 de Agosto de 1771 e aí faleceu a 21 de Setembro de 1832.

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Naquele tempo, todos os que conseguiram escapar a uma morte cruel tinham já regressado à pátria, salvos dos perigos da guerra e do mar. Ulisses, o único que suspirava pelo regresso e pela esposa, estava preso numa gruta profunda pela ninfa Calipso, divina deusa que o desejava para seu marido. Mas, com o rodar dos anos, chegou a altura decretada pelos deuses para que ele voltasse a Ítaca, sua pátria; nem por isso, no entanto, cessaram os seus trabalhos. Todos os deuses se compadeciam dele, excepto Poseídon, que o perseguiu até ao fim das suas aventuras.
Mas o deus tinha ido à afastada região dos etíopes, para assistir a um sacrifício de toiros e ovelhas que lhe estava reservado. Enquanto se deliciava no festim, reuniram-se os restantes deuses no palácio de Zeus Olímpico.


*HomeroOdisseia.Porto: ABLivro Edições, 1978, p. 13

Recolha de Luís Pereira

Nota:
Poeta grego, sabe-se muito pouco da sua existência e pensa-se que Homero viveu no século VIII a. C..

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O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling andavam pelas estradas do reino dos Han. O reino doa Han: era o nome por que naquele tempo era conhecida a Grande China.
Ninguém pintava melhor que Wang-Fô as montanhas a sair do nevoeiro, os lagos sobrevoados pelas libelinhas, e as enormes vagas do Pacífico vistas a partir da costa. Dizia-se que as suas imagens santas atendiam imediatamente qualquer prece; sempre que ele pintava um cavalo, tinha que o mostrar preso a uma estaca ou seguro pelas rédeas, pois se assim não fosse o cavalo escapava-se do quadro, a galope, e nunca mais ninguém lhe punha a vista em cima. Os ladrões não se atreviam a entrar em casa de quem possuísse um cão-de-guarda pintado por Wang-Fô.
Wang-Fô poderia ter sido rico, mas gostava mais de dar que de vender. Distribuía as pinturas que fazia por quem as apreciasse verdadeiramente, ou então trocava-as por uma tigela de comida. O seu carinho ia todo para os pincéis, para os rolos de seda ou de papel de arroz, e para ao pauzinhos de tinta de diversas cores que ele friccionava contra uma pedra para misturar o pó numa pequena porção de água.

*Yourcenar, Marguerite A Fuga de Wang-Fô. Lisboa: Contexto & Imagem, 1998, p.3
Recolha de Jorge Silva

Nota:
Escritora belga, Marguerite Yourcenar nasceu em Bruxelas a 8 de Junho de 1903 e faleceu em Mount Desert Island (Maine) Estados Unidos da América a 17 de Dezembro de 1987. Foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras(1980).

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X
NO ALTO MAR


Durante toda a noite reinou uma grande agitação a bordo: fizeram-se os últimos embarques, e alguns amigos do conde, o senhor Blandly e outros, vieram desejar-lhe boa viagem e que re¬gressasse em breve. Nunca tínhamos tido tanto trabalho na Estalagem do Almirante Benbow e eu estava completamente morto de fadiga quando, pouco antes da madrugada, o contramestre fez soar o seu apito e os homens se agarraram às malaguetas do ca¬brestante. Ainda que eu sentisse o dobro do cansaço, não sairia da ponte nem por todo o ouro do mundo: era tudo para mim tão novo e tão apaixonante! As ordens curtas, o som vibrante do apito, os marinheiros a correrem para os seus postos à luz das lanternas de bordo.
- Eh, Barbecue, canta lá uma das tuas canções! - gritou uma voz.
- Anda! A tua lengalenga do costume! - disse outro.
- Está bem, está bem, camaradas! - respondeu Long John, que estava perto, encostado à muleta.
E começou a cantar imediatamente os versos que eu conhecia tão bem:
- Quinze homens sobre o baú do morto...
E toda a tripulação continuou em coro:
- Ió-hó-hó, e uma garrafa de aguardente!
Ao terceiro «hó», empurraram as malaguetas com energia.
Mesmo no meio da excitação daquele momento, julguei-me transportado à velha Estalagem do Almirante Benbow, e pareceu-me ouvir a voz do capitão misturada com o coro. Mas já levantavam a âncora, já a penduravam nos seus turcos, a escorrer água, e já eram desfraldadas as velas e a terra e os outros barcos fugiam, a ambos os lados do navio; e antes de eu ter tempo de me deitar no meu beliche para recuperar uma hora de sono, o Hispaniola navegava para a Ilha do Tesouro.

* Stevenson, Robert-Louis – A Ilha do Tesouro. Lisboa: Verbo,1990, pp.58-59.

Recolha de José Augusto Gaspar

Nota:
Novelista, poeta e escritor escocês, Robert-Louis Stevenson nasceu em Edimburgo a 13 de Setembro de 1859 e faleceu em Apia (Samoa) a 3 de Dezembro de 1894.


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A Pequena Sereia

muitos anos, quando no fundo do mar havia maravilhosos palácios de mármore e coral, habitados por sereias, existiu uma, a mais formosa de todas.
Era a mais nova das seis princesas-sereia que viviam num palácio encantado no fundo das águas. Tinha a pele acetinada como pétalas de rosa e os olhos tão azuis como as águas do mar, mas não se achava bonita.
-Mamã –perguntou um dia a pequena sereia à sua mãe -, quando podemos ir à superfície para ver as coisas maravilhosas que há na terra?
-Quando tiveres quinze anos –respondeu-lhe a mãe. –Nessa altura poderás sentar-te nas rochas, à luz da lua, e admirar os barcos que cruzam os oceanos.
No entanto, a jovem, que não podia conter a sua impaciência, nadou até à superfície sem que ninguém a visse.
O mar estava bastante agitado e a pequena sereia, muito espantada, viu um barco a estilhaçar-se contra os recifes. E ouviu a voz de um jovem que pedia socorro.
A pequena nadou na sua direcção e segurou-o pelos cabelos, antes que se afundasse.
-Desmaiou –pensou ela. –Vou mantê-lo a flutuar e levá-lo para a praia.
Quando o Sol nasceu, os homens e as mulheres da cidade encontraram o jovem na praia. A sereia, escondida atrás de umas rochas, observou as manifestações de alegria da multidão.
-O nosso príncipe salvou-se! –gritaram.
A pequena sereia viu também que o príncipe sorria para os que o aclamavam e, muito satisfeito, entrou com eles num grande palácio branco.
A pequena sereia, um pouco triste por não ter recebido os agradecimentos do seu protegido, voltou ao fundo do mar e não mais conseguiu sorrir desde então.
-Mas o que é que viste na superfície? –perguntavam as irmãs, curiosas.
Porém, ela não lhes respondia. Sempre tinha sido silenciosa e pensativa, mas a partir de então foi-o ainda mais. Procurava distrair-se cuidando das belíssimas flores do seu jardim submarino, mas ficava ainda mais triste ao recordar as maravilhosas flores da terra, a cor do céu e a carícia da brisa.
Subiu muitas mais vezes à superfície, nas noites de luar, mas nunca mais voltou a ver o príncipe.
Um dia, sem poder mais suportar a sua dor, contou às irmãs o que tinha acontecido.
-Se pudesse caminhar sobre a terra –disse-lhes -, iria buscar o príncipe e nunca mais me separava dele.
-Talvez consigas alcançar o que deseljas –disse um polvo que tinha estado a ouvir a conversa –se fizeres uma visita à bruxa que vive na gruta das escarpas.
A sereiazinha foi até à tal gruta e encontrou a bruxa. Esta perguntou-lhe com voz desafinada:
-Que queres de mim?
-Queria ter duas pernas como as princesas da terra.
-Apaixonaste-te pelo príncipe, não foi?
-Pois foi –respondeu a sereiazinha com voz trémula.
-Vou ajudar-te –prometeu a bruxa. –Vou fazer com que a tua cauda de peixe se transforme em duas robustas pernas, mas tu terás de me dar alguma coisa em troca.
-Dou-te o que tu quiseres –disse a pequena sereia -, todo o ouro do mar, colares de pérolas e de coral...
-Bah! –interrompeu a bruxa. –Nada disso me interessa. O que eu quero é a tua voz.
-Mas se ficar sem voz –retorquiu a pequena sereia -, como poderei falar com o príncipe?
-Nos teus olhos lerá o que sentes, sem necessidade de palavras.
-Está bem –resignou-se a sereiazinha. –Dou-te a minha voz em troca de duas pernas que me permitam ir até onde está o príncipe.
-Bebe esta poção –disse a bruxa com a voz doce que lhe tinha dado a sereia -, e verás os teus desejos realizados.
A princesa-sereia bebeu a poção da bruxa e a sua cauda de peixe desapareceu para dar lugar a um par de esbeltas pernas. Depois de caminhar por florestas e montanhas, chegou à cidade. Havia uma grande festa no palácio do príncipe.
-Não te vão deixar entrar, rapariga –disse-lhe um coelhinho curioso que estava à porta.
“E porque não?”, pensou a sereiazinha. “Estou tão bem vestida como essas damas que estão a dançar no salão.”
E tal como pensava, as sentinelas, ao verem-na tão bonita e elegante, afastaram-se para a deixarem entrar.
O príncipe quis logo dançar com aquela jovem tão bela e elegante. A sereia concordou, emocionada, com um lindo sorriso.
-Como te chamas? –perguntou-lhe o príncipe.
No entanto, a sereiazinha, como tinha ficado muda, não pôde responder.
-És muda? –voltou ele a perguntar.
A sereia, a chorar, acenou que sim com a cabeça.
-Vem –disse-lhe o príncipe depois da dança -, quero que conheças a minha noiva. É uma princesa muito bonita como tu, e vou casar-me com ela.
A sereia queria muito poder gritar: “Eu também gosto de ti! E salvei-te de morreres afogado!”, mas como não tinha voz, não pôde dizer nada.
Passados alguns dias, o príncipe casou com a bela princesa que tinha vindo de um país longínquo.
A sereia teve de se contentar em ser dama de honor, levando a cauda do branquíssimo vestido de noiva. Os sinos tocavam com um ritmo de festa, mas para ela era um som triste.
Os noivos embarcaram num lindo barco e a sereia foi despedir-se deles à praia. E ali ficou até ao anoitecer.
As suas irmãs, que vieram à superfície, disseram-lhe:
-Não chores mais, irmãzinha. Nós, as sereias, não podemos conquistar o amor de um ser humano. Deves resignar-te.
A bruxa devolveu a cauda de peixe à sereia e as seis irmãs voltaram ao fundo do mar.
Nas noites de luar, a pequena sereia apaixonada regressa à superfície para ver os barcos passar.
Passaram muitos navios, mas o príncipe, a quem salvou a vida e por quem suspira de amor, não vem em nenhum.

Andersen, Hans Christian - Os Mais Belos Contos de Andersen. Rio de Mouro: Ed. Girassol, s/d, pp.8-19

Recolha Colectiva

Nota:

Poeta e escritor dinamarquês, Hans Christian Andersen nasceu em Odense a 2 de Abril de 1805 e faleceu em Copenhaga a 4 de Agosto de 1875.

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Centauro

Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campânula nocturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco, puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.

Saramago, José - Objecto Quase. Lisboa: Ed. Caminho,1999, pp.120-121 (texto adaptado)

Recolha Colectiva

Nota:
Escritor, roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta português, José Saramago nasceu em Azinhaga (Golegã)a 16 de Novembro de 1922. O único escritor nacional a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.

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«De que adianta o vice-reitor Paulmann me ter dado esperanças de poder trabalhar como copista: será que o meu azar do costume, que me persegue para todo o lado, mo vai permitir?» (...)
Neste momento, o estudante Anselmo foi interrompido no seu solilóquio por um estranho roçagar e sacudidelas, que se ouviam vindas de algures, bem perto dele, no relvado, e que começaram a subir pela árvore e pelos ramos do sabugueiro que se estendiam por cima da sua cabeça. Era como se o vento do fim do dia estivesse a abanar as folhas, movendo as suas pequenas asas num movimento caprichoso, para a frente e para trás. Em seguida, ouviu uns sussurros e uns ceceios, e parecia que os rebentos em botão soavam como pequenos sinos de cristal. Anselmo ouviu e ouviu. Sem compreender como, não tardou que os murmúrios, os ceceios e os tilintares se fossem aos poucos transformando em palavras débeis e entrecortadas:
-No meio disto, no meio daquilo; no meio dos ramos, no meio dos rebentos, desabrocha, e vem gritar comigo aqui e ali! Minha irmã, minha irmã! Anda e brilha, para cima e para baixo, por aqui, por ali, vem! Raios de sol amarelos; vento da tardinha a soprar; gotas de orvalho a tagarelar; rebentos a cantar; cantemos com os ramos e os rebentos! Em breve as estrelas vão brilhar; vem comigo. No meio disto, no meio daquilo, anda rebento, vem rebento, anda girar, vem brilhar, vem, minha irmã!
E assim continuou, por algum tempo, o seu confuso e estranho discurso. O estudante Anselmo pensou:
«Bom, não passa do vento da tarde, que hoje pelos vistos está a murmurar de forma compreensível.» Mas, nesse preciso instante, soou por cima da sua cabeça, de facto, uma harmonia tripla perfeita de sinos de cristal. Olhou para cima e viu três pequenas serpentes a brilhar, verdes e douradas, enroladas em torno dos ramos e a esticarem as suas cabeças na direcção do sol-poente. De novo se ouviu o murmúrio e o ciciar das mesmas palavras que antes ouvira, e as pequenas serpentes deslizavam, acariciando, para cima e para baixo, os ramos; e enquanto se moviam rapidamente, era como se o sabugueiro espalhasse milhares de brilhantes esmeraldas através das escuras folhas.
«É o sol do fim do dia a brincar com o sabugueiro», pensou o estudante Anselmo. Mas lá estava de novo o som dos sinos. E Anselmo viu que uma das serpentes erguera a cabeça na sua direcção. Uma sensação semelhante a um choque eléctrico atravessou-lhe os membros. Tremeu no seu âmago. Continuava a olhar para cima, e um par de maravilhosos olhos azul-escuros olhavam para ele com um desejo enorme, e uma estranha sensação de euforia abençoada e de profunda tristeza quase lhe esmagou o coração. Enquanto olhava e continuava a olhar, cheio de desejo quente, para aqueles bondosos olhos, os sinos de cristal soaram ainda mais forte numa harmonia perfeita. E as brilhantes esmeraldas caíram e envolveram-no, brilhando em seu redor como faíscas brilhantes e ostentando resplandecentes fios de ouro. O sabugueiro moveu-se e falou:
-Tu sentas-te à minha sombra. O meu perfume envolve-te, mas não o conseguiste compreender. O perfume é a minha fala, quando o amor a incendeia.
O vento de fim de tarde passou deslizando e disse:
-Eu brinquei em redor das tuas têmporas, mas tu não me compreendeste. Este sopro é a minha fala, quando o amor a incendeia.
O raio de sol atravessou as nuvens e o esplendor do seu brilho queimou, como se falasse:
-Eu inundei-te com o meu brilho dourado, mas tu não me compreendeste. Esse brilho é a minha fala, quando o amor a incendeia.
E cada vez mais se foi deixando afundar no brilho daqueles maravilhosos olhos, a sua ânsia e o seu desejo a aumentarem. E tudo se ergueu e se moveu em seu redor, como se despertasse para uma vida feliz. As flores e os rebentos libertaram os seus aromas em redor dele, e eram semelhantes ao imponente som de milhares de suaves vozes, e o que cantavam era transportado, qual eco, pelas nuvens da tarde, enquanto esvoaçavam na direcção de terras distantes. Mas exactamente quando o último raio de sol mergulhou por detrás das colinas e o crepúsculo lançou o seu manto sobre toda a cena, ouviu-se uma voz rouca e funda, vinda de uma grande distância:
-Eia!Eia!Que barulheira e chinfrim vem a ser este? Eia! Eia! Quem é que me apanha o raio que fugiu para trás das colinas? Sol que chegue e cantigas que cheguem. Eia! Eia! Pelos arbustos e pela erva, através da erva e dos rios. Eia! Eia! Vem cá aba-a-a-i-x-o, ba-a-ai-x-o!
E a voz sumiu, como murmúrios, sob a trovoada distante, mas os sinos de cristal tocaram em aguda discordância. Tudo ficou mudo e o estudante deixou-se ficar a observar a forma como as três serpentes, a brilhar e a luzir, deslizaram pela relva na direcção do rio Elba e, sobre as ondas onde elas desapareceram, estalou uma chama verde, a qual, a brilhar, obliquamente, desapareceu na direcção da cidade.

Hoffmann, E.T.A. - O Pote de Ouro. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2002, p.-8-10


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão, Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann nasceu em Königsberg, 24 de Janeiro de 1776 e faleceu em Berlim a 25 de Junho de 1822.
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Ainda que apenas trocassem frases banais sobre opiniões comuns, parecia a Kitty que cada uma das suas palavras decidia a sorte de ambos e a sua. E, coisa singular, aquelas frases avulsas sobre o mau francês de Ivan Ivanovitch ou o casamento infeliz da menina Ieletski ganhavam, com efeito, um valor particular cujo alcance eles sentiam, tal como Kitty. Na alma da pobre rapariga, o baile, a assistência, tudo se confundiu numa espécie de bruma. Apenas a força da educação lhe permitiu fazer o seu dever, quer dizer, dançar, conversar e mesmo sorrir. Entretanto, quando se dispunham as cadeiras para a mazurca e alguns pares deixavam os salões pequenos para tomarem parte na dança, um grande acesso de desespero a invadiu. Tendo recusado cinco dançarinos, não tinha já qualquer possibilidade de ser convidada: de mais se conheciam os seus êxitos na sociedade para que se supusesse por um instante que não tinha par. Teria de pretextar uma indisposição e pedir à mãe que saíssem. Não teve força para isso. Sentia-se aniquilada.
Refugiada no fundo de um toucador, deixou-se cair numa cadeira. As ondas vaporosas do vestido envolviam-lhe, como numa nuvem, o corpo delgado. Um dos seus braços nus, magro e delicado, caía sem força, submerso nas pregas do vestido cor-de-rosa, o outro braço agitava em pequenos movimentos um leque diante do seu rosto ardente. Mas embora se assemelhasse assim a uma bela borboleta descansando sobre uma folha de erva e prestes a desdobrar as suas asas irisadas, uma horrível angústia a oprimia.
«Talvez esteja enganada, imagino o que não é verdade», pensou. Mas teve de recordar-se do que tinha visto.
- Kitty, que se passa? Não compreendo nada – disse a condessa Nordston, que se aproximara em passos macios.
Os lábios de Kitty estremeceram. Levantou-se precipitadamente. – Kitty, tu não danças a mazurca?
- Não, não – respondeu ela, numa voz molhada de lágrimas.
- Ele convidou-a diante de mim – disse a condessa, sabendo bem que Kitty compreendia do que se tratava. – Ela objectou: «Não dança, então, com a menina Stcherbatski?»
- Pouco me importa! – respondeu Kitty.
Só ela podia compreender o horror da sua situação: não tinha sido ela na véspera, porque se julgava amada por um ingrato, recusado a mão de um homem a quem talvez amasse?
A condessa Nordston foi procurar Korsunski, com quem devia dançar a mazurca e incitou-o a convidar Kitty em seu lugar: esta abriu, pois, a mazurca sem, afortunadamente, ter de falar: o seu par passava o tempo a organizar figuras. Como Vronski e Ana tinham tomado o lugar quase em frente dela, Kitty observava-os com os seus olhos agudos. Vigiava-os de mais perto ainda quando chegava a sua vez de dançar, e quanto mais os olhava mais considerava a sua infelicidade para sempre consumada. Adivinhou que eles se sentiam absolutamente sós entre a multidão, e nas feições habitualmente impassíveis de Vronski viu passar aquela expressão submissa e receosa, aquela expressão de cão espancado que tanto a impressionara já.
Se Ana sorria, ele respondia ao seu sorriso; se ela parecia meditar, ele tornava-se preocupado. Uma força quase sobrenatural atraía os olhares de Kitty para Ana. Na verdade, emanava desta mulher um encanto irresistível: sedutor era o seu vestido na sua simplicidade; sedutores, os belos braços carregados de braceletes; sedutor, o pescoço firme, rodeado de pérolas; sedutores, os caracóis travessos da sua cabeleira um tanto em desordem; sedutores, os gestos das suas mãos finas, os movimentos das suas pernas nervosas; sedutor, o seu belo rosto animado. Mas havia nesta sedução qualquer coisa de terrível e de cruel.
Kitty admirava-a ainda mais que antes, ao mesmo tempo que sentia aumentar o seu sofrimento. Sentia-se esmagada e o seu rosto o dizia: ao passar junto dela, numa figura, Vronski não a reconheceu ao princípio, de tal maneira as suas feições estavam alteradas.
- Que belo baile! – disse-lhe ele, por descargo de consciência – Sim – respondeu ela.

*Tolstoi, Leo – Ana Karenine. Porto: Público, 2004, pp. 81-82


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor russo, Leo Tolstoi (também conhecido por Liev Tolstói,Léon Tolstói, Leão Tolstoi, Leo Tolstoy ou Lev Nikoláievich Tolstói) nasceu em Yasnaia Poliana a 9 de Setembro de 1828 e faleceu em Astapovo a 20 de Novembro de 1910.

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O Pavão e o Grou

Talvez vocês não saibam, mas os antigos (e principalmente os Gregos) comiam os pavões como nós hoje comemos os frangos. Consideravam-nos um excelente alimento e criavam-nos juntamente com os outros animais de galinheiro.
Um destes pavões (o pavão mais vaidoso desta terra), não contente em abrir a cauda em leque de cinco em cinco minutos, aborrecia os seus companheiros de capoeira com grandes discursos sobre a sua beleza.
-Olhem para mim, observem-me bem –dizia. –Já alguma vez viram uma ave mais bonita do que eu? Vejam que desenho, que tonalidades brilhantes, que...
Ora, o acaso quis que um grou, em viagem para regiões quentes aterrasse sobre o tecto da capoeira para aí descansar um pouco. O esvoaçar das suas asas interrompeu o pavão, que lhe dirigiu um olhar ameaçador e prosseguiu:
-... que delicadeza de tons! Às vezes só consigo sentir pena. No entanto, pensando bem, há ainda quem seja mais feio que vocês. Querem sentir-se melhor? Olhem para aquele passareco lá em cima, com aquele bico desprporcionado e... aquele pescoço inacreditável!
-Isso é para mim, amigo? –perguntou calmamente o grou.
-E para quem mais poderia ser? –respondeu o pavão.
-Bem, se fosse a ti não me inquietaria tanto. Tenho o pescoço comprido, é verdade, é mesmo assim. Quanto a ti, vais ficar com ele mais comprido quando o teu dono to cortar para te meter na panela. Vais ficar tão belo como as galinhas. E enquanto estás para aí a esgravatar e a dizer todos esses disparates, eu parto em direcção ao céu, lá para cima, para o meio das nuvens...
O grou abriu as suas grandes asas, bateu-as três ou quatro vezes e levantou voo, majestoso, a caminho do seu destino, do lado de lá do mar.

Moral da história:frequentemente, uma roupa modesta veste uma pessoa de grande valor, enquanto o luxo e a riqueza escondem muitas vezes uma nulidade.


*Esopo - As mais belas fábulas de Esopo. Porto:Civilização Editora, 1994, pp. 84-85
Recolha Colectiva

Nota:
Fabulista grego do século VI a.C.. pouco se sabe de Esopo.
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PRÓSPERO
Olhai, Senhor rei; eis diante vós Próspero, o duque espoliado de Milão; para que mais certeza tenhais de que é um príncipe vivo quem vos fala, eu vos abraço; a vós e aos vossos dou as boas-vindas.

ALONSO
Se és ou não Próspero ou se apenas és algum fantasma encantado para me iludir, como iludido até agora tenho andado – não o sei. O teu pulso bate, como o de um ser de carne e sangue; e desde que olhei para ti, senti confranger-se-me o coração como se a loucura se apoderasse de mim. É extraordinário. Renuncio ao teu ducado e imploro o teu perdão para os meus agravos… Como é porém possível que Próspero esteja vivo e se encontre aqui?

PRÓSPERO
(A Gonzalo)
Antes de mais nada, nobre amigo, consenti que abrace a vossa velhice cuja honra não tem centro nem limites.

GONZALO
Tudo isto é real ou não é? Não posso jurar nem uma coisa nem outra.

PRÓSPERO
As decepções por que passastes nesta ilha não vos deixam ainda acreditar na realidade das coisas. Sede todos bem-vindos, meus amigos. (Aparte a Sebastião e a António) Quanto a vós, meu par de patifes, o que eu devia era fazer recair a cólera de Sua Alteza sobre vós, dando-vos como traidores: não direi nada, porém.

SEBASTIÃO
(Aparte) É o Diabo que está a falar pela boca dele.


PRÓSPERO
Não. Quanto a vós, detestado senhor, a quem não posso chamar irmão, sem infectar a boca, perdoo-vos o vosso abominável crime… Perdoo a todos; exijo só o meu ducado que sereis, bem o sei, constrangido a restituir-me.



Shakespeare, William
A Tempestade. Porto: Lello & Irmãos Editores, s/d, pp.122-123


Recolha Colectiva


Nota:
Poeta e dramaturgo inglês, William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon a 23 de Abril de 1564, onde também veio a falecer a 23 de Abril do ano de 1616. É considerado o maior escritor de Língua Inglesa.

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As duas irmãs estavam muito bonitas, com os seus vestidos simples: o da Meg, prateado, de um tom entre o cinzento e o castanho, com uma faixa de veludo azulada e gola de renda; o da Jo, castanho, com uma aplicação de linho que lembrava um colarinho gomado de homem. Cada uma calçou uma luva muito bonita de cor clara, levando dobrada na mão a outra que tinha nódoas. Os sapatos de salto alto da Meg estavam-lhe muito apertados e magoavam-lhe os pés. Os dezanove ganchos de cabelo da Jo parecia estarem-lhe pregados na cabeça! Todas foram de opinião que o efeito conseguido era muito fino!
- Divirtam-se, minhas queridas...! - desejou-lhes a senhora March. - Não comam demais e venham assim que eu mandar a Hanna buscar-vos. Levam os lencinhos bonitos?
- Sim, mãe – riu Jo. - A Meg até pôs água-de-colónia no dela. E, enquanto se afastavam, acrescentou: - Tenho a certeza de que a mãe nos faria a mesma pergunta se fôssemos a fugir de um terramoto!
- A mãe tem razão, por que uma verdadeira senhora conhece-se pelo calçado, pelas luvas e pelo lencinho – declarou Meg, que herdara os mesmos gostos.
Quando chegaram à festa, sentiram-se um pouco inibidas, porque era raro irem a reuniões. Mas a senhora Gardiner cumprimentou-as amavelmente, entregando-as ao cuidado da filha mais velha.
Meg foi logo convidada para dançar, mas Jo, vendo um rapaz ruivo aproximar-se e temendo que ele a convidasse também, escondeu-se atrás de uma cortina. Entretanto, já alguém tinha escolhido aquele refúgio e, de repente, achou-se em frente do neto do senhor Laurence.
- Desculpe! Não sabia que estava aqui gente. - E Jo dispunha-se a deixar aquele esconderijo.
Mas o rapaz começou a rir e, apesar de um pouco surpreso, disse afavelmente:
- Não tem importância. Se quiser, deixe-se ficar.
- Não o incomodo?
- Absolutamente nada. Vim para aqui porque me sentia um pouco deslocado. Quase não conheço ninguém.
- Comigo passa-se o mesmo. Não se vá embora..., a não ser que queira.
Jo, sentindo o embaraço que se instalara entre eles, disse, procurando ser educada:
- Creio que já tive o prazer de o encontrar. Mora na casa ao lado da nossa, não é verdade?
- Sim, somos vizinhos. - E começou a rir, já completamente à vontade.

* Alcott, Louisa May – Mulherzinhas. Lisboa: Verbo, 1990, pp.25-26


Nota:
Escritora norte-americana, particularmente talentosa na escrita de obras de literatura juvenil, Louisa May Alcott nasceu em Filadélfia a 29 de Novembro de 1832 e faleceu em Boston a 6 de Março de 1888.


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Naufrágio e Chegada a Lilipucia

O barco bateu num rochedo e naufragou, por fim. Metemo-nos seis num bote e remámos corajosamente umas três léguas para alcançar terra. Não o conseguimos. O cansaço, a fome e as ondas encarregaram-se da triste tarefa de levar os meus companheiros. Eu, remando e depois nadando, a tudo escapei, nem sei como. Não vi ninguém, nem sinal sequer de qualquer habitação. Tudo deserto. Marginando a praia, um campo de verde relva apenas. Cansadíssimo, extenuado, deitei-me na relva macia e adormeci. A noite vinha descendo e eu não tinha energia suficiente para caminhar mais.
Longas horas dormi, sossegadamente. Já o Sol estava alto quando acordei, e a sua claridade intensa quase me ofuscou a vista. Disse de mim para mim: “Vou-me levantar e procurar de comer e sentar-me à sombra da primeira árvore que me apareça.” Era o melhor que podia fazer... Simplesmente, ao tentar erguer-me não o consegui. Estava preso pelos cabelos, que nesse tempo se usavam muito compridos, e o resto do corpo enredado num sem número de cordelinhos delgados, mas fortíssimos, que me tolhiam os movimentos. Pernas e braços, mãos e pés, senti-os fixados ao solo. Retesei os músculos, respirei fundo, quis sacudir aquelas malhas apertadas –e nada! Os cordéis entravam-me na pele e feriam-me. que aflição! Por não me ser possível fazer outra cousa, voltei a estar quieto. Uma espécie de comichão ou prurido, como que provocado pela marcha de formiga ou de mosca, incomodou-me então. De súbito, surgiu a meus olhos espantados uma criaturinha minúscula, um homenzinho da altura aí duns cinco centímetros –imagine-se! –mas bem proporcionado e todo esperto. O uniforme e as armas que ostentava convenceram-me que se tratava de um militar, de um soldado ou, talvez, de um oficial. E mais havia, decerto, à minha volta, pois um ruído confuso de passos e de exclamações me chegava aos ouvidos.


Swift, Jonathan - As viagens de Gulliver in Leão, Margarida, Filipe, Helena(org.)- “Antologia de Língua Portuguesa: 6º Ano”. Amadora: Raiz Editora, 1993, pp.71-72. (Texto adaptado)


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor irlandês, Jonathan Swift nasceu em Dublin a 30 de Novembro de 1667 e faleceu nessa mesma cidade a 19 de Outubro de 1745.



* Obras do acervo da Biblioteca desta escola.

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