sexta-feira, 17 de julho de 2009

Boas Férias!



A criatura estudiosa que trazes dentro de ti, o inquieto ser espiritual que encarna a tua verdadeira personalidade, guia-te ao longo da tua vida. Não vires as costas a eventuais futuros sem antes teres a certeza de que nada poderás aprender com eles.

Bach, Richard - Ilusões.

Declaração dos Direitos das Crianças

HOMEM

Homem
Abre os olhos e verás
Em cada outro homem um irmão.

Homem
As paixões que te consomem
Não são boas nem más.
São a tua condição.

A paz,
Porém, só a terás
Quando o pão que os outros comem,
Homem,
For igual ao teu pão.

Armindo Rodrigues in Ferreira, Catarina (org.). Brincar também é poesia. Lisboa: Plátano d., 1987, p.107.



BALADA DA NEVE

Batem leve, levemente,
como quem chama por mim…
Será chuva? Será gente?
Gente não é, certamente
e a chuva não bate assim…

É talvez a ventania;
mas há pouco, há poucochinho,
nem uma agulha bulia
na quieta melancolia
dos pinheiros do caminho...

Quem bate, assim, levemente,
com tão estranha leveza,
que mal se ouve, mal se sente?
Não é chuva, nem é gente,
nem é vento com certeza.

Fui ver. A neve caía
do azul cinzento do céu,
branca e leve, branca e fria...
Há quanto tempo a não via!
E que saudade, Deus meu!

Olho-a através da vidraça.
Pôs tudo da cor do linho.
Passa gente e, quando passa,
os passos imprime e traça
na brancura do caminho...

Fico olhando esses sinais
da pobre gente que avança,
e noto, por entre os mais,
os traços miniaturais
duns pezitos de criança...

E descalcinhos, doridos...
a neve deixa inda vê-los,
primeiro, bem definidos,
– depois, em sulcos compridos,
porque não podia erguê-los!...

Que quem já é pecador
sofra tormentos… enfim!
Mas as crianças, Senhor,
porque lhes dais tanta dor?!...
Porque padecem assim?!...

E uma infinita tristeza,
uma funda turbação
entra em mim, fica em mim presa.
Cai neve na natureza…
– e cai no meu coração.

* Augusto Gil in Varanda, Maria de Lourdes e Santos, Maria Manuela (org.).Poetas de hoje e de ontem – Para os mais Novos. s/l: Ed. Chimpanzé Intelectual, 2007, pp.84-85.


Recolha colectiva

* Obra do acervo da Biblioteca desta escola.

Direitos do Consumidor/Consumismo


* 1ª Feira da Saúde AVVL

Os Supermercados

Os supermercados são os palácios dos pobres. Não são só os azarentos e os mal alojados, os que ao longo das gerações foram reduzindo os gastos da imaginação, que frequentam e, de certo modo, vivem o supermercado, as chamadas grandes superfícies. As grandes superfícies com a sua área iluminada e sempre em festa; a concentração dos prazeres correntes, como a alimentação e a imagem oferecida pelo cinema, satisfazem as pequenas ambições do quotidiano. Não há euforia mas há um sentimento de parentesco face às limitações de cada um. A chuva e o calor são poupados aos passeantes; a comida ligeira confina com a dieta dos adolescentes; há uma emoção própria que paira nas naves das grandes superfícies. São as catedrais da conveniência, dão a ilusão de que o sol quando nasce é para todos e que a cultura e a segurança estão ao alcance das pequenas bolsas. Não há polícia, há uma paz de transeunte que a cidade já não oferece.

Bessa-Luís, Agustina - Antes do Degelo



Consumismo Cego

A nossa vida é influenciada em grande medida pelos jornais. A publicidade é feita unicamente no interesse dos produtores e nunca dos consumidores. Por exemplo, convenceu-se o público de que o pão branco é superior ao pão escuro. A farinha, cada vez mais finamente peneirada, foi privada dos seus princípios mais úteis. Mas conserva-se melhor e o pão faz-se mais facilmente. Os moleiros e os padeiros ganham mais dinheiro. Os consumidores comem, sem o saber, um produto inferior. E em todos os países em que o pão é a parte principal da alimentação, as populações degeneram. Gastam-se enormes quantias na publicidade comercial. Assim, imensos produtos alimentares e farmacêuticos inúteis, e muitas vezes prejudiciais, tornaram-se uma necessidade para os homens civilizados. Deste modo, a avidez dos indivíduos suficientemente hábeis para orientar o gosto das massas populares para os produtos à venda desempenha um papel capital na nossa civilização.

Carrel, Alexis - O Homem esse Desconhecido

Textos recolhidos colectivamente.

* Trabalho elaborado no âmbito do Tema de Vida 2 (Ambiente e Cidadania).



* Visita de estudo ao Museu da Chapelaria - S. João da Madeira


Quando ela pôs o chapéu

Quando ela pôs o chapéu
Como se tudo acabasse,
Sofri de não haver véu
Que inda um pouco a demorasse.

Fernando Pessoa


* Actividades realizadas no âmbito dos Temas de Vida 2 (Ambiente e Cidadania) e 3 (Somos Consumidores).

Dependências - Estupefacientes e Outras Substâncias Viciantes



* Trabalho efectuado no âmbito do Tema de vida 1 (Saúde) e em articulação com a 1ª Feira da Saúde AVVL.

Energias Renováveis/Ecologia

Sociedade do Desperdício

Uma tentação imediata do nosso tempo é o desperdício. Não é só resultado duma invenção constante da oferta que leva ao apetite do consumo, como é, sobretudo, uma forma de aristocracia técnica. O tecnocrata, novo aristocrata da inteligência artificial, dos números e dos computadores, propõe uma sociedade de dissipação. Propõe-na na medida em que favorece os métodos de maior rendimento e a rapina dos recursos naturais. As hormonas que fazem crescer uma vitela em três meses, as árvores que dão fruto três vezes por ano, tudo obriga a natureza a render mais. Para quê? Para que os alimentos se amontoem nas lixeiras e os desperdícios de cozinha ou de vestuário sirvam afinal para descrever o bluff da produtividade.

Bessa-Luís, Agustina - Dicionário Imperfeito


Correspondências

A natureza é um templo augusto, singular,
Que a gente ouve exprimir em língua misteriosa;
Um bosque simbolista onde a árvore frondosa
Vê passar os mortais, e segue-os com o olhar.

Como distintos sons que ao longe vão perder-se,
Formando uma só voz, de uma rara unidade,
Tem vasta como a noite a claridade,
Sons, perfumes e cor logram corresponder-se

Há perfumes subtis de carnes virginais,
Doces como o oboé, verdes como o alecrim,
E outros, de corrupção, ricos e triunfais

Como o âmbar e o musgo, o incenso e o benjoim,
Entoando o louvor dos arroubos ideais,
Com a larga expansão das notas d'um clarim.

Baudelaire, Charles - "As Flores do Mal" (Tradução de Delfim Guimarães)

Textos recolhidos colectivamente.

* Trabalho Efectuado no âmbito do Tema de Vida 2 (Cidadania e Ambiente).

segunda-feira, 13 de julho de 2009

Dependências - Tabagismo

ÁLCOOL, FUMO E CAFÉ

Não mais o álcool,
não mais o fumo,
de azulado rumo,
nem o café.
Resta-me a fé
num áureo aprumo.
Não me consumo.
Sei como é.

Os nervos cansam
e vão partir-se.
A voz de Circe
ouço-a ainda...
E, mais mais linda,
ainda me chama,
e, embora lama,
quero-lhe ainda.

Mas quero quietos
os meus sentidos,
comprometidos
em ascensões.
As sensações
hei-de chamá-las,
purificá-las
com comunhões.

Resto sedento,
desalentado. . .
Quem a meu lado
no funeral?
Negro portal
hei-de quebrá-lo.
Cantar de galo
sobre o coval.

(As mãos daquela
que se dizia
tão minha amiga
já se sumiram...
Vagas sorriram
outras derrotas...
Ignotas rotas
as poluíram...)

E as tardes brancas
hei-de esposá-las.
Não quero galas
na minha boda.
Bailem em roda
só as crianças
ingénuas danças
à sua moda.

Se um homem cumpre
o seu destino,
não vão sem tino
mexer na obra.
É como a cobra
que fere o seio
quem, de permeio,
altera a obra.

De qualquer forma
sigo o meu rumo,
num áureo aprumo,
cheio de fé.
Sem o café,
sem o tabaco,
cortar o opaco
sei como é.


Dias, Saul - Obra Poética.Porto, Brasília Editora, 1980, pp. 52-54




VÍCIO DE FUMAR

Dentro de um milhão de anos,
ou talvez pouco menos compreendas
que fumando assisti ao trânsito dos dias
e em círculos de fumo percebi palavras de ternura.

Então descobrirás que havia coisas simples,
rostos, pedras e pernas
quebrando a frialdade das manhãs
e um mundo que era de homens, bichos, crianças.

Então talvez entendas
porque passei fumando as curvas dolorosas,
porque fumando escrevi poemas
e a fumar testemunhei a crueldade.

Mesmo que nada digas – e mais vale o silêncio –
mesmo que nada faças, mesmo que te comovas,
– na distância de fumo a separar-nos – sentirás
onde era o coração, um peso ou uma lágrima?

Onde eram os lábios uma dor ou um fumo
que deixei nos cafés, que entreguei nos beijos,
que guardei, inútil património, nas gavetas com contas.

Então calcularás quantas foram as vezes
em que falei com Deus, em que estive sozinho,
quantos crimes inúteis pratiquei,
quando fui anjo sem o perceber.

Na tua solidão, procurarás nos bolsos um cigarro
e não o fumarás.

António Rebordão Navarro, Amanhã

Dependências - Alcoolismo

Álcool

Guilhotinas, pelouros e castelos
Resvalam longamente em procissão;
Volteiam-me crepúsculos amarelos,
Mordidos, doentios de roxidão.

Batem asas d'auréola aos meus ouvidos,
Grifam-me sons de cor e de perfumes,
Ferem-me os olhos turbilhões de gumes,
Desce-me a alma, sangram-me os sentidos.

Respiro-me no ar que ao longe vem,
Da luz que me ilumina participo;
Quero reunir-me, e todo me dissipo -
Luto, estrebucho... Em vão! Silvo pra além...

Corro em volta de mim sem me encontrar...
Tudo oscila e se abate como espuma...
Um disco de ouro surge a voltear...
Fecho os meus olhos com pavor da bruma...

Que droga foi a que me inoculei?
Ópio d'inferno em vez de paraíso?...
Que sortilégio a mim próprio lancei?
Como é que em dor genial eu me eterizo?

Nem ópio nem morfina. O que me ardeu,
Foi alcool mais raro e penetrante:
É só de mim que eu ando delirante -
Manhã tão forte que me anoiteceu.

Sá-Carneiro, Mário de - Dispersão



Bendito Sejas

Bendito sejas,
Meu verdadeiro conforto
E meu verdadeiro amigo!

Quando a sombra, quando a noite
Dos altos céus vem descendo,
A minha dor,
Estremecendo, acorda...

A minha dor é um leão
Que lentamente mordendo
Me devora o coração.

Canto e choro amargamente;
Mas a dor, indiferente,
Continua...

Então,
Febril, quase louco,
Corro a ti, vinho louvado!
- E a minha dor adormece,
E o leão é sossegado.

Quanto mais bebo mais dorme:
Vinho adorado,
O teu poder é enorme!

E eu vos digo, almas em chaga,
Ó almas tristes sangrando:
Andarei sempre
Em constante bebedeira!

Grande vida!

- Ter o vinho por amante
E a morte por companheira!

Botto, António - Canções

sexta-feira, 10 de julho de 2009

Grandes Mestres




A marquesa agora com a idade de 30 anos, estava bela, embora de formas delicadas e de uma excessiva fragilidade. O seu maior encanto provinha de uma fisionomia cuja calma revelava uma surpreendente anímica. O seu olhar, cheio de brilho, mas que parecia velado por um pensamento constante, acusava uma vida febril e uma resignação ilimitada. As suas pálpebras, quase sempre pudicamente descidas, raramente se erguiam. Se lançava olhares em torno de si, fazia-o com um movimento triste e dir-se-ia que reservava o fulgor dos seus olhos para ocultar contemplações. Deste modo, todo o homem superior se sentia curiosamente atraído para esta mulher serena e silenciosa. Se, por um lado, o espírito procurava adivinhar os mistérios da perpétua reacção que nela se produzia do presente para o passado, a alma, por outro lado, não estava menos interessada em se iniciar nos segredos de um coração que, de qualquer modo, se sentia orgulhoso dos seus sofrimentos.
*Balzac, Honoré de A Mulher de Trinta Anos. Mem-Martins: Europa-América, s/d, pág. 87.

Recolha de Ricardo Pinto

Nota:
Romancista francês, Honoré de Balzac nasceu em Tours a 20 de Maio de 1799 e faleceu em Paris a 18 de Agosto 1850.

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CAPÍTULO V

O Conselho da Lagarta


A Lagarta e Alice ficaram a olhar uma para a outra, durante algum tempo, em silêncio; por fim, a Lagarta tirou o cachimbo da boca e dirigiu-lhe a palavra, com voz arrastada e sonolenta.
- Quem és tu? – perguntou a Lagarta.
Não era um começo de conversa muito animador. Alice respondeu muito cautelosamente:
- Eu… eu agora já nem sei… mas pelo menos sei quem era quando me levantei esta manhã, mas acho que depois disso já mudei muitas vezes.
- Que queres dizer com isso? – exclamou a Lagarta, desabridamente. – Explica-te!
- Acho que não me posso explicar – disse Alice – porque eu não sou eu, estás a perceber?
- Não compreendo – disse a Lagarta.
- Parece-me que não sou capaz de o dizer mais claramente – replicou Alice, com muita delicadeza – porque eu também não entendo muito bem e não sei por onde começar; e ter tido tantos tamanhos diferentes num dia só, é muito confuso.
- Não é nada – disse a Lagarta.
- Bom, talvez ainda o não tivesses descoberto – disse Alice –, mas quando te transformares em crisálida… E um dia isso há-de acontecer, sabes… e a seguir em borboleta, penso que vais sentir-te um bocado esquisita, não achas?
- Nem nada – disse a Lagarta.
- Bom, talvez os teus sentimentos sejam diferentes – disse Alice –; tudo o que sei, é que, para mim, seria muito esquisito.

*Carroll, Lewis - Alice no País das Maravilhas. Porto: Público, 2004, pp.39-40

Recolha de Elisabete Fernandes

Nota:
Escritor inglês, Lewis Carroll nasceu em Cheshire a 27 de Janeiro de 1832 e faleceu em Guilford a 14 de Janeiro de 1898.

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Valentine soltou um grito.
- Estive na casa de Monte Cristo à uma hora, falamos, ele da mágoa que a sua família experimentou, e eu do seu pesar, quando uma carruagem entrou no jardim de entrada. Nunca, até àquele momento, depositei qualquer confiança em pressentimentos, mas agora não posso deixar de acreditar neles, Valentine. Arrepiei-me ao som da carruagem. Cedo ouvi passos nas escadas, que me aterrorizavam tanto quanto os do capitão aterrorizavam D.Juan. A porta abriu-se finalmente, Albert de Morcerf entrou primeiro, e comecei a ter esperança que os meus receios fossem em vão, quando, atrás dele, entrou outro jovem, e o conde exclamou:
«-Ah, aqui está o barão Franz d'Epinay!
«- Chamei a toda a minha força e coragem para me ajudar. Talvez tenha empalidecido,mas decerto que sorri. E saí cinco minutos depois, sem ouvir uma única palavra que se tinha dito.
-Pobre Maximilian! - Murmurou Valentine.



*Dumas, Alexandre (Pai)O Conde de Monte-Cristo. Porto: Público, 2004, p. 224

Recolha de Sílvia Moreira

Nota:
Romancista francês, Alexandre Dumas (Pai) nasceu em Villers-Cotterêts a 24 de Julho de 1802 e faleceu em Puys a 5 de Dezembro de 1870. O seu filho, também chamado Alexandre Dumas (Paris, 27 de Julho de 1824-Marly-le-Roi, 27 de Novembro de 1895) veio a tornar-se, igualmente, um romancista muito apreciado, tendo escrito obras famosas como "A Dama das Camélias" e "Os Três Mosqueteiros".

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CAPÍTULO I



Que trata da condição e exercício do famoso fidalgo
D. Quixote de la Mancha



Num lugar da Mancha, de cujo nome não quero lembrar-me, vivia, não
há muito, um fidalgo, dos de lança em cabido, adarga antiga, rocim fraco e galgo corredor.
Passadio, olha seu tanto mais de vaca do que de carneiro, as mais das ceias restos de carne picada com sua cebola e vinagre, aos sábados outros sobejos ainda somenos, lentilhas às sextas-feiras, algum pombito de crescença aos domingos, consumiam três quartos do seu haver. O remanescente, levavam-no saio de belarte,calças de veludo para as festas, com seus pantufos do mesmo; e para os dias de semana o seu bellori do mais fino.
Tinha em casa uma ama que passava dos quarenta, uma sobrinha que não chegava aos vinte, e um moço da poisada e da porta a fora, tanto para o trato do rocim, como para o da fazenda.
Orçava na idade o nosso fidalgo pelos cinquenta anos. Era rijo de compleição, seco de carne, enxuto de rosto, madrugador e amigo da caça.



*Cervantes, Miguel deD. Quixote de la Mancha. Porto: Público, 2004, p. 15,

Recolha de Manuel Mendes

Nota:
Romancista, poeta e dramaturgo espanhol, Miguel de Cervantes nasceu em Alcalá de Henares a 29 de Setembro de 1547 e faleceu em Madrid a 23 de Abril de 1616.

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Capítulo 24

De novo em casa


A tia Em acabava de sair de casa para regar as couves, quando levantou os olhos e viu Dorothy correr na sua direcção.
- Minha querida menina! – gritou, envolvendo-a nos seus braços e cobrindo-lhe o rosto de beijos. – Mas donde é que vens?
- Da Terra de Oz – disse Dorothy solenemente. – E aqui está o Totó, também. E oh, tia Em! Estou tão feliz por estar de novo em casa!
*Baum, FrankO Feiticeiro de Oz. Porto: Público, 2004, p. 157

Recolha de Arnaldina Moreira

Nota:
Escritor norte-americano, Frank Baum nasceu em Nova Iorque a 15 de Maio de 1856 e faleceu em Hollywood a 6 de Maio de 1919.

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Capítulo I

Miragens

Chamem-me Ismael. Há alguns anos, quantos ao certo, não importa, com pouco ou nenhum dinheiro, na bolsa, e sem nada de especial que me interessasse em terra, veio-me à ideia meter-me num navio e ver a parte aquática do mundo. É uma maneira que eu tenho de afugentar a melancolia e regularizar a circulação. Sempre que na minha boca se desenha um esgar carrancudo; sempre que me vai na alma um Novembro húmido e cinzento, sempre que dou comigo a deter-me involuntariamente em frente das agências funerárias ou a engrossar o séquito de todos os funerais com que me deparo; e, especialmente, sempre que me sinto invadido por um estado de espírito de tal maneira mórbido, que só os sólidos princípios morais me impedem de descer à rua com a ideia deliberada de arrancar metodicamente os chapéus a todos os transeuntes, nessa altura, dou--me conta que está na hora de me fazer ao mar, quanto antes. É o meu estratagema para evitar o suicídio. Catão lança-se sobre a espada com um floreado filosófico; eu, calmamente, embarco. Nada há de surpreendente nisto. Embora não se dêem conta, tal como eu, quase todos os homens acalentam, mais tarde ou mais cedo, este desejo de mar.
*Melville, HermanMoby Dick. Porto: Público, 2004, p.5,

Recolha de Olga Pereira

Nota:
Escritor, poeta e ensaísta norte-americano, Herman Mellville nasceu em Nova Iorque a 1 de Agosto de 1819 e faleceu na mesma cidade a 28 de Stembro de 1891.

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V

A MÃE


Não julgo que haja no mundo nada mais risonho do que as ideias que acordam, no coração de uma mãe, a vista do sapatinho de seu filho; sobretudo se é sapato de festa, dos domingos, do baptismo, o sapato bordado até quase na sola, um sapato com o qual a criancinha ainda nem deu nem um passo. Esse sapato tem uma graça e pequenez, é-lhe tão impossível andar, que para a mãe é o mesmo que ver o filho. Sorri-lhe, beija-o, fala-lhe: a si se pergunta se pode efectivamente haver um pé tão pequenino; e, a criança embora ausente, basta-lhe o lindo sapato para lhe pôr sob os olhos a doce e frágil criatura. Julga vê-la, vê-a inteira, viva, alegre, com as mãos delicadas, a cabeça redonda, os lábios puros, os olhos serenos onde o branco é azul. Se é de Inverno ela lá está, arrasta-se sobre o tapete, escala laboriosamente um tamborete e a mão treme que ela não aproxime o fogo. Se é de Verão, arrasta-se pelo pátio, pelo jardim, arranca a erva entre as pedras, olha ingenuamente para os grandes cães, os grandes cavalos, sem medo, brinca com as camélias, com as flores, e faz ralhar o jardineiro que encontra a areia nos canteiros e a terra nas ruas. Tudo ri, tudo brilha, tudo folga à roda dela, como ela, até ao sopro do ar e ao raio do sol que se divertem à porfia nos travessos anéis dos seus cabelos. O sapato tudo isto mostra à mãe e faz-lhe fundir o coração como o fogo a cera.
Mas, quando se perdeu o filho essas mil imagens de alegria, de encanto, de ternura, que se estreiam à volta do sapatinho, tornam-se outras tantas coisas horríveis. O lindo sapato bordado não é mais do que um instrumento de tortura que esmaga eternamente o coração da mãe. E sempre na mesma fibra a vibrar, a fibra mais profunda e mais sensível, mas em vez dum anjo que a acaricia é um demónio que a belisca.

*Hugo, VictorNossa Senhora de Paris. Porto: Público, 2004, pp. 216, 217.
Recolha de Isaura Pereira

Nota:
Escritor e poeta francês, Victor Hugo nasceu em Besançon a 26 de Fevereiro de 1802 e faleceu em Paris, 22 de maio de 1885.

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- Já leu alguma vez a velha profecia da janela da Biblioteca?
- Sim, muitas vezes – gritou a menina a olhar para cima. – Conheço perfeitamente. Está pintado com umas curiosas letras negras e quase ilegível. Só tem seis versos:


Quando uma menina de ouro vencer
O pecado dos lábios que o proferem
Quando a velha amendoeira florir
E uma menina, com as lágrimas, a regar
Toda a casa ficará na paz
Há tanto esperada pelos Canterville

Mas não sei o que querem dizer.


*Wilde, Oscar O Fantasma de Canterville. Porto: Público, 2004, p. 27

Recolha de Manuel Silva

Nota:
Escritor irlandês, Oscar Wilde nasceu em Dublin a 16 de Outubro de 1854 e faleceu em Paris a 30 de Novembro de 1900.

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Capítulo XI

PHILEAS FOGG ARRANJA UM MEIO DE TRANPORTE CURIOSO A UM PREÇO INACREDITÁVEL


O comboio saiu pontualmente da estação. Entre os passageiros encontravam-se diversos militares, funcionários do estado e traficantes de ópio e índigo, cujo negócio os havia atraído para a costa oriental.
Passepartout viajava na mesma carruagem do seu amo e um outro passageiro ocupava o lugar em frente.
Era Sir Francis Cromarty, um dos parceiros de whist do Sr. Fogg no Mongólia, que ia juntar-se ao seu destacamento em Bernares.
Sir Francis Cromarty era francês e era um homem alto e elegante na sua casa dos cinquenta anos, que se tinha distinguido na última revolta de Sepoy. Ele fez da Índia o seu lar, fazendo apenas curtas visitas a Inglaterra muito espaçadamente. Estava tão familiarizado com os costumes, história e carácter da Índia e do seu povo quanto os próprios indígenas. O Sr.Fogg que considerava não estar propriamente em viagem de lazer, mas sim cumprindo um itinerário, não mostrou qualquer interesse em questioná-lo acerca destes assuntos.


*Verne, JúlioA Volta ao Mundo em 80 dias. Porto: Público, 2004, p. 65

Recolha de João Fernandes

Nota:
Escritor francês, Jules Verne (aportuguesado para Júlio Verne) nasceu em Nantes a 8 de Fevereiro de 1828 e faleceu em Amiens, 24 de Março de 1905.


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Capítulo I

Naquele belo condado da ridente Inglaterra, banhado pelo Don, estendia-se outrora uma imensa floresta. Esta cobria a maior parte das montanhas e dos vales que se encontravam entre Sheffield e a encantadora cidade de Doncaster.
Aí se travaram algumas das mais sangrentas batalhas da Guerra das Duas Rosas; aí ainda se acoitaram esses bandos de foragidos, esses outlaws de quem as velhas canções inglesas popularizaram as proezas. Tal é o lugar onde se passa a nossa história, durante os últimos anos do reinado de Ricardo I, na hora em que o regresso do príncipe era desesperadamente desejado pelos seus súbditos oprimidos por todos os males que uma tirania pode conceber.
Depois da conquista da Inglaterra por Guilherme, quatro gerações não haviam sido suficientes para misturar o sangue dos vencedores com o dos vencidos, nem para fundir pela identidade da língua e dos interesses duas raças inimigas, das quais uma conservara todo o orgulho do triunfo, e a outra sofria gemendo a humilhação. A derrota de Hastings havia posto todo o poder nas mãos da nobreza normanda, e esta não o tinha usado com moderação. Salvo um muito pequeno número de excepções, a raça dos príncipes e dos nobres saxões tinha sido aniquilada ou espoliada, e bem raros eram os que, na terra de seus pais, possuíam ainda alguns magros domínios.


*Scott, WalterIvanhoe. Lisboa: Ed. Verbo, 1985, p.5

Recolha de Sidónio Augusto Vieira

Nota:
Romancista escocês, Sir Walter Scott nasceu em Edimburgo a 15 de Agosto de 1771 e aí faleceu a 21 de Setembro de 1832.

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Naquele tempo, todos os que conseguiram escapar a uma morte cruel tinham já regressado à pátria, salvos dos perigos da guerra e do mar. Ulisses, o único que suspirava pelo regresso e pela esposa, estava preso numa gruta profunda pela ninfa Calipso, divina deusa que o desejava para seu marido. Mas, com o rodar dos anos, chegou a altura decretada pelos deuses para que ele voltasse a Ítaca, sua pátria; nem por isso, no entanto, cessaram os seus trabalhos. Todos os deuses se compadeciam dele, excepto Poseídon, que o perseguiu até ao fim das suas aventuras.
Mas o deus tinha ido à afastada região dos etíopes, para assistir a um sacrifício de toiros e ovelhas que lhe estava reservado. Enquanto se deliciava no festim, reuniram-se os restantes deuses no palácio de Zeus Olímpico.


*HomeroOdisseia.Porto: ABLivro Edições, 1978, p. 13

Recolha de Luís Pereira

Nota:
Poeta grego, sabe-se muito pouco da sua existência e pensa-se que Homero viveu no século VIII a. C..

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O velho pintor Wang-Fô e o seu discípulo Ling andavam pelas estradas do reino dos Han. O reino doa Han: era o nome por que naquele tempo era conhecida a Grande China.
Ninguém pintava melhor que Wang-Fô as montanhas a sair do nevoeiro, os lagos sobrevoados pelas libelinhas, e as enormes vagas do Pacífico vistas a partir da costa. Dizia-se que as suas imagens santas atendiam imediatamente qualquer prece; sempre que ele pintava um cavalo, tinha que o mostrar preso a uma estaca ou seguro pelas rédeas, pois se assim não fosse o cavalo escapava-se do quadro, a galope, e nunca mais ninguém lhe punha a vista em cima. Os ladrões não se atreviam a entrar em casa de quem possuísse um cão-de-guarda pintado por Wang-Fô.
Wang-Fô poderia ter sido rico, mas gostava mais de dar que de vender. Distribuía as pinturas que fazia por quem as apreciasse verdadeiramente, ou então trocava-as por uma tigela de comida. O seu carinho ia todo para os pincéis, para os rolos de seda ou de papel de arroz, e para ao pauzinhos de tinta de diversas cores que ele friccionava contra uma pedra para misturar o pó numa pequena porção de água.

*Yourcenar, Marguerite A Fuga de Wang-Fô. Lisboa: Contexto & Imagem, 1998, p.3
Recolha de Jorge Silva

Nota:
Escritora belga, Marguerite Yourcenar nasceu em Bruxelas a 8 de Junho de 1903 e faleceu em Mount Desert Island (Maine) Estados Unidos da América a 17 de Dezembro de 1987. Foi a primeira mulher eleita para a Academia Francesa de Letras(1980).

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X
NO ALTO MAR


Durante toda a noite reinou uma grande agitação a bordo: fizeram-se os últimos embarques, e alguns amigos do conde, o senhor Blandly e outros, vieram desejar-lhe boa viagem e que re¬gressasse em breve. Nunca tínhamos tido tanto trabalho na Estalagem do Almirante Benbow e eu estava completamente morto de fadiga quando, pouco antes da madrugada, o contramestre fez soar o seu apito e os homens se agarraram às malaguetas do ca¬brestante. Ainda que eu sentisse o dobro do cansaço, não sairia da ponte nem por todo o ouro do mundo: era tudo para mim tão novo e tão apaixonante! As ordens curtas, o som vibrante do apito, os marinheiros a correrem para os seus postos à luz das lanternas de bordo.
- Eh, Barbecue, canta lá uma das tuas canções! - gritou uma voz.
- Anda! A tua lengalenga do costume! - disse outro.
- Está bem, está bem, camaradas! - respondeu Long John, que estava perto, encostado à muleta.
E começou a cantar imediatamente os versos que eu conhecia tão bem:
- Quinze homens sobre o baú do morto...
E toda a tripulação continuou em coro:
- Ió-hó-hó, e uma garrafa de aguardente!
Ao terceiro «hó», empurraram as malaguetas com energia.
Mesmo no meio da excitação daquele momento, julguei-me transportado à velha Estalagem do Almirante Benbow, e pareceu-me ouvir a voz do capitão misturada com o coro. Mas já levantavam a âncora, já a penduravam nos seus turcos, a escorrer água, e já eram desfraldadas as velas e a terra e os outros barcos fugiam, a ambos os lados do navio; e antes de eu ter tempo de me deitar no meu beliche para recuperar uma hora de sono, o Hispaniola navegava para a Ilha do Tesouro.

* Stevenson, Robert-Louis – A Ilha do Tesouro. Lisboa: Verbo,1990, pp.58-59.

Recolha de José Augusto Gaspar

Nota:
Novelista, poeta e escritor escocês, Robert-Louis Stevenson nasceu em Edimburgo a 13 de Setembro de 1859 e faleceu em Apia (Samoa) a 3 de Dezembro de 1894.


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A Pequena Sereia

muitos anos, quando no fundo do mar havia maravilhosos palácios de mármore e coral, habitados por sereias, existiu uma, a mais formosa de todas.
Era a mais nova das seis princesas-sereia que viviam num palácio encantado no fundo das águas. Tinha a pele acetinada como pétalas de rosa e os olhos tão azuis como as águas do mar, mas não se achava bonita.
-Mamã –perguntou um dia a pequena sereia à sua mãe -, quando podemos ir à superfície para ver as coisas maravilhosas que há na terra?
-Quando tiveres quinze anos –respondeu-lhe a mãe. –Nessa altura poderás sentar-te nas rochas, à luz da lua, e admirar os barcos que cruzam os oceanos.
No entanto, a jovem, que não podia conter a sua impaciência, nadou até à superfície sem que ninguém a visse.
O mar estava bastante agitado e a pequena sereia, muito espantada, viu um barco a estilhaçar-se contra os recifes. E ouviu a voz de um jovem que pedia socorro.
A pequena nadou na sua direcção e segurou-o pelos cabelos, antes que se afundasse.
-Desmaiou –pensou ela. –Vou mantê-lo a flutuar e levá-lo para a praia.
Quando o Sol nasceu, os homens e as mulheres da cidade encontraram o jovem na praia. A sereia, escondida atrás de umas rochas, observou as manifestações de alegria da multidão.
-O nosso príncipe salvou-se! –gritaram.
A pequena sereia viu também que o príncipe sorria para os que o aclamavam e, muito satisfeito, entrou com eles num grande palácio branco.
A pequena sereia, um pouco triste por não ter recebido os agradecimentos do seu protegido, voltou ao fundo do mar e não mais conseguiu sorrir desde então.
-Mas o que é que viste na superfície? –perguntavam as irmãs, curiosas.
Porém, ela não lhes respondia. Sempre tinha sido silenciosa e pensativa, mas a partir de então foi-o ainda mais. Procurava distrair-se cuidando das belíssimas flores do seu jardim submarino, mas ficava ainda mais triste ao recordar as maravilhosas flores da terra, a cor do céu e a carícia da brisa.
Subiu muitas mais vezes à superfície, nas noites de luar, mas nunca mais voltou a ver o príncipe.
Um dia, sem poder mais suportar a sua dor, contou às irmãs o que tinha acontecido.
-Se pudesse caminhar sobre a terra –disse-lhes -, iria buscar o príncipe e nunca mais me separava dele.
-Talvez consigas alcançar o que deseljas –disse um polvo que tinha estado a ouvir a conversa –se fizeres uma visita à bruxa que vive na gruta das escarpas.
A sereiazinha foi até à tal gruta e encontrou a bruxa. Esta perguntou-lhe com voz desafinada:
-Que queres de mim?
-Queria ter duas pernas como as princesas da terra.
-Apaixonaste-te pelo príncipe, não foi?
-Pois foi –respondeu a sereiazinha com voz trémula.
-Vou ajudar-te –prometeu a bruxa. –Vou fazer com que a tua cauda de peixe se transforme em duas robustas pernas, mas tu terás de me dar alguma coisa em troca.
-Dou-te o que tu quiseres –disse a pequena sereia -, todo o ouro do mar, colares de pérolas e de coral...
-Bah! –interrompeu a bruxa. –Nada disso me interessa. O que eu quero é a tua voz.
-Mas se ficar sem voz –retorquiu a pequena sereia -, como poderei falar com o príncipe?
-Nos teus olhos lerá o que sentes, sem necessidade de palavras.
-Está bem –resignou-se a sereiazinha. –Dou-te a minha voz em troca de duas pernas que me permitam ir até onde está o príncipe.
-Bebe esta poção –disse a bruxa com a voz doce que lhe tinha dado a sereia -, e verás os teus desejos realizados.
A princesa-sereia bebeu a poção da bruxa e a sua cauda de peixe desapareceu para dar lugar a um par de esbeltas pernas. Depois de caminhar por florestas e montanhas, chegou à cidade. Havia uma grande festa no palácio do príncipe.
-Não te vão deixar entrar, rapariga –disse-lhe um coelhinho curioso que estava à porta.
“E porque não?”, pensou a sereiazinha. “Estou tão bem vestida como essas damas que estão a dançar no salão.”
E tal como pensava, as sentinelas, ao verem-na tão bonita e elegante, afastaram-se para a deixarem entrar.
O príncipe quis logo dançar com aquela jovem tão bela e elegante. A sereia concordou, emocionada, com um lindo sorriso.
-Como te chamas? –perguntou-lhe o príncipe.
No entanto, a sereiazinha, como tinha ficado muda, não pôde responder.
-És muda? –voltou ele a perguntar.
A sereia, a chorar, acenou que sim com a cabeça.
-Vem –disse-lhe o príncipe depois da dança -, quero que conheças a minha noiva. É uma princesa muito bonita como tu, e vou casar-me com ela.
A sereia queria muito poder gritar: “Eu também gosto de ti! E salvei-te de morreres afogado!”, mas como não tinha voz, não pôde dizer nada.
Passados alguns dias, o príncipe casou com a bela princesa que tinha vindo de um país longínquo.
A sereia teve de se contentar em ser dama de honor, levando a cauda do branquíssimo vestido de noiva. Os sinos tocavam com um ritmo de festa, mas para ela era um som triste.
Os noivos embarcaram num lindo barco e a sereia foi despedir-se deles à praia. E ali ficou até ao anoitecer.
As suas irmãs, que vieram à superfície, disseram-lhe:
-Não chores mais, irmãzinha. Nós, as sereias, não podemos conquistar o amor de um ser humano. Deves resignar-te.
A bruxa devolveu a cauda de peixe à sereia e as seis irmãs voltaram ao fundo do mar.
Nas noites de luar, a pequena sereia apaixonada regressa à superfície para ver os barcos passar.
Passaram muitos navios, mas o príncipe, a quem salvou a vida e por quem suspira de amor, não vem em nenhum.

Andersen, Hans Christian - Os Mais Belos Contos de Andersen. Rio de Mouro: Ed. Girassol, s/d, pp.8-19

Recolha Colectiva

Nota:

Poeta e escritor dinamarquês, Hans Christian Andersen nasceu em Odense a 2 de Abril de 1805 e faleceu em Copenhaga a 4 de Agosto de 1875.

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Centauro

Vencido por uma fadiga de séculos e milénios, o cavalo ajoelhou-se. Encontrar posição para dormir que a ambos conviesse era sempre uma operação difícil. Em geral, o cavalo deitava-se de lado e o homem repousava também assim. Mas enquanto o cavalo podia ficar uma noite inteira nessa posição, sem se mexer, o homem, para não mortificar o ombro e todo o mesmo lado do tronco, tinha de vencer a resistência do grande corpo inerte e adormecido para o fazer voltar-se para o lado oposto: era sempre um sonho difícil. Quanto a dormir de pé, o cavalo podia, mas o homem não. E quando o esconderijo era demasiado estreito, a mudança tornava-se impossível e a exigência dela ansiedade. Não era um corpo cómodo. O homem nunca podia deitar-se de bruços sobre a terra, cruzar os braços sob o queixo e ficar assim a ver as formigas ou os grãos de terra, ou a contemplar a brancura de um caule tenro saindo do negro húmus. E sempre para ver o céu tivera de torcer o pescoço, salvo quando o cavalo se empinava nas patas traseiras, e o rosto do homem, no alto, podia inclinar-se um pouco mais para trás: então, sim, via melhor a grande campânula nocturna das estrelas, o prado horizontal e tumultuoso das nuvens, ou o sino azul e o sol, como o último vestígio da forja original.
O cavalo adormeceu logo. Com as patas metidas entre as espadanas, as crinas da cauda espalhadas pelo chão, respirava profundamente, num ritmo certo. O homem, meio reclinado, com o ombro direito fincado na parede da vala, arrancou alguns ramos baixos e cobriu-se com eles. Em movimento suportava bem o frio e o calor, ainda que não tão bem como o cavalo. Mas quando quieto e adormecido arrefecia rapidamente. Agora, pelo menos enquanto o sol não aquecesse a atmosfera, iria sentir-se bem sob o conforto das folhagens. Na posição em que estava, podia ver que as árvores não se fechavam completamente em cima: uma faixa irregular, já matinal e azul, prolongava-se para diante e, de vez em quando, atravessando-a de uma banda para a outra, ou seguindo-a na mesma direcção por instantes, voavam velozmente os pássaros. Os olhos do homem cerraram-se devagar. O cheiro da seiva dos ramos arrancados entontecia-o um pouco, puxou para cima do rosto um ramo mais farto de folhas e adormeceu. Nunca sonhava como um homem. Também nunca sonhava como sonharia um cavalo. Nas horas em que estavam acordados, as ocasiões de paz ou simples conciliação não eram muitas. Mas o sonho de um e o sonho do outro faziam o sonho do centauro.

Saramago, José - Objecto Quase. Lisboa: Ed. Caminho,1999, pp.120-121 (texto adaptado)

Recolha Colectiva

Nota:
Escritor, roteirista, jornalista, dramaturgo e poeta português, José Saramago nasceu em Azinhaga (Golegã)a 16 de Novembro de 1922. O único escritor nacional a ser galardoado com o Prémio Nobel da Literatura.

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«De que adianta o vice-reitor Paulmann me ter dado esperanças de poder trabalhar como copista: será que o meu azar do costume, que me persegue para todo o lado, mo vai permitir?» (...)
Neste momento, o estudante Anselmo foi interrompido no seu solilóquio por um estranho roçagar e sacudidelas, que se ouviam vindas de algures, bem perto dele, no relvado, e que começaram a subir pela árvore e pelos ramos do sabugueiro que se estendiam por cima da sua cabeça. Era como se o vento do fim do dia estivesse a abanar as folhas, movendo as suas pequenas asas num movimento caprichoso, para a frente e para trás. Em seguida, ouviu uns sussurros e uns ceceios, e parecia que os rebentos em botão soavam como pequenos sinos de cristal. Anselmo ouviu e ouviu. Sem compreender como, não tardou que os murmúrios, os ceceios e os tilintares se fossem aos poucos transformando em palavras débeis e entrecortadas:
-No meio disto, no meio daquilo; no meio dos ramos, no meio dos rebentos, desabrocha, e vem gritar comigo aqui e ali! Minha irmã, minha irmã! Anda e brilha, para cima e para baixo, por aqui, por ali, vem! Raios de sol amarelos; vento da tardinha a soprar; gotas de orvalho a tagarelar; rebentos a cantar; cantemos com os ramos e os rebentos! Em breve as estrelas vão brilhar; vem comigo. No meio disto, no meio daquilo, anda rebento, vem rebento, anda girar, vem brilhar, vem, minha irmã!
E assim continuou, por algum tempo, o seu confuso e estranho discurso. O estudante Anselmo pensou:
«Bom, não passa do vento da tarde, que hoje pelos vistos está a murmurar de forma compreensível.» Mas, nesse preciso instante, soou por cima da sua cabeça, de facto, uma harmonia tripla perfeita de sinos de cristal. Olhou para cima e viu três pequenas serpentes a brilhar, verdes e douradas, enroladas em torno dos ramos e a esticarem as suas cabeças na direcção do sol-poente. De novo se ouviu o murmúrio e o ciciar das mesmas palavras que antes ouvira, e as pequenas serpentes deslizavam, acariciando, para cima e para baixo, os ramos; e enquanto se moviam rapidamente, era como se o sabugueiro espalhasse milhares de brilhantes esmeraldas através das escuras folhas.
«É o sol do fim do dia a brincar com o sabugueiro», pensou o estudante Anselmo. Mas lá estava de novo o som dos sinos. E Anselmo viu que uma das serpentes erguera a cabeça na sua direcção. Uma sensação semelhante a um choque eléctrico atravessou-lhe os membros. Tremeu no seu âmago. Continuava a olhar para cima, e um par de maravilhosos olhos azul-escuros olhavam para ele com um desejo enorme, e uma estranha sensação de euforia abençoada e de profunda tristeza quase lhe esmagou o coração. Enquanto olhava e continuava a olhar, cheio de desejo quente, para aqueles bondosos olhos, os sinos de cristal soaram ainda mais forte numa harmonia perfeita. E as brilhantes esmeraldas caíram e envolveram-no, brilhando em seu redor como faíscas brilhantes e ostentando resplandecentes fios de ouro. O sabugueiro moveu-se e falou:
-Tu sentas-te à minha sombra. O meu perfume envolve-te, mas não o conseguiste compreender. O perfume é a minha fala, quando o amor a incendeia.
O vento de fim de tarde passou deslizando e disse:
-Eu brinquei em redor das tuas têmporas, mas tu não me compreendeste. Este sopro é a minha fala, quando o amor a incendeia.
O raio de sol atravessou as nuvens e o esplendor do seu brilho queimou, como se falasse:
-Eu inundei-te com o meu brilho dourado, mas tu não me compreendeste. Esse brilho é a minha fala, quando o amor a incendeia.
E cada vez mais se foi deixando afundar no brilho daqueles maravilhosos olhos, a sua ânsia e o seu desejo a aumentarem. E tudo se ergueu e se moveu em seu redor, como se despertasse para uma vida feliz. As flores e os rebentos libertaram os seus aromas em redor dele, e eram semelhantes ao imponente som de milhares de suaves vozes, e o que cantavam era transportado, qual eco, pelas nuvens da tarde, enquanto esvoaçavam na direcção de terras distantes. Mas exactamente quando o último raio de sol mergulhou por detrás das colinas e o crepúsculo lançou o seu manto sobre toda a cena, ouviu-se uma voz rouca e funda, vinda de uma grande distância:
-Eia!Eia!Que barulheira e chinfrim vem a ser este? Eia! Eia! Quem é que me apanha o raio que fugiu para trás das colinas? Sol que chegue e cantigas que cheguem. Eia! Eia! Pelos arbustos e pela erva, através da erva e dos rios. Eia! Eia! Vem cá aba-a-a-i-x-o, ba-a-ai-x-o!
E a voz sumiu, como murmúrios, sob a trovoada distante, mas os sinos de cristal tocaram em aguda discordância. Tudo ficou mudo e o estudante deixou-se ficar a observar a forma como as três serpentes, a brilhar e a luzir, deslizaram pela relva na direcção do rio Elba e, sobre as ondas onde elas desapareceram, estalou uma chama verde, a qual, a brilhar, obliquamente, desapareceu na direcção da cidade.

Hoffmann, E.T.A. - O Pote de Ouro. Mem Martins: Publicações Europa-América, 2002, p.-8-10


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor, compositor, caricaturista e pintor alemão, Ernst Theodor Amadeus Wilhelm Hoffmann nasceu em Königsberg, 24 de Janeiro de 1776 e faleceu em Berlim a 25 de Junho de 1822.
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Ainda que apenas trocassem frases banais sobre opiniões comuns, parecia a Kitty que cada uma das suas palavras decidia a sorte de ambos e a sua. E, coisa singular, aquelas frases avulsas sobre o mau francês de Ivan Ivanovitch ou o casamento infeliz da menina Ieletski ganhavam, com efeito, um valor particular cujo alcance eles sentiam, tal como Kitty. Na alma da pobre rapariga, o baile, a assistência, tudo se confundiu numa espécie de bruma. Apenas a força da educação lhe permitiu fazer o seu dever, quer dizer, dançar, conversar e mesmo sorrir. Entretanto, quando se dispunham as cadeiras para a mazurca e alguns pares deixavam os salões pequenos para tomarem parte na dança, um grande acesso de desespero a invadiu. Tendo recusado cinco dançarinos, não tinha já qualquer possibilidade de ser convidada: de mais se conheciam os seus êxitos na sociedade para que se supusesse por um instante que não tinha par. Teria de pretextar uma indisposição e pedir à mãe que saíssem. Não teve força para isso. Sentia-se aniquilada.
Refugiada no fundo de um toucador, deixou-se cair numa cadeira. As ondas vaporosas do vestido envolviam-lhe, como numa nuvem, o corpo delgado. Um dos seus braços nus, magro e delicado, caía sem força, submerso nas pregas do vestido cor-de-rosa, o outro braço agitava em pequenos movimentos um leque diante do seu rosto ardente. Mas embora se assemelhasse assim a uma bela borboleta descansando sobre uma folha de erva e prestes a desdobrar as suas asas irisadas, uma horrível angústia a oprimia.
«Talvez esteja enganada, imagino o que não é verdade», pensou. Mas teve de recordar-se do que tinha visto.
- Kitty, que se passa? Não compreendo nada – disse a condessa Nordston, que se aproximara em passos macios.
Os lábios de Kitty estremeceram. Levantou-se precipitadamente. – Kitty, tu não danças a mazurca?
- Não, não – respondeu ela, numa voz molhada de lágrimas.
- Ele convidou-a diante de mim – disse a condessa, sabendo bem que Kitty compreendia do que se tratava. – Ela objectou: «Não dança, então, com a menina Stcherbatski?»
- Pouco me importa! – respondeu Kitty.
Só ela podia compreender o horror da sua situação: não tinha sido ela na véspera, porque se julgava amada por um ingrato, recusado a mão de um homem a quem talvez amasse?
A condessa Nordston foi procurar Korsunski, com quem devia dançar a mazurca e incitou-o a convidar Kitty em seu lugar: esta abriu, pois, a mazurca sem, afortunadamente, ter de falar: o seu par passava o tempo a organizar figuras. Como Vronski e Ana tinham tomado o lugar quase em frente dela, Kitty observava-os com os seus olhos agudos. Vigiava-os de mais perto ainda quando chegava a sua vez de dançar, e quanto mais os olhava mais considerava a sua infelicidade para sempre consumada. Adivinhou que eles se sentiam absolutamente sós entre a multidão, e nas feições habitualmente impassíveis de Vronski viu passar aquela expressão submissa e receosa, aquela expressão de cão espancado que tanto a impressionara já.
Se Ana sorria, ele respondia ao seu sorriso; se ela parecia meditar, ele tornava-se preocupado. Uma força quase sobrenatural atraía os olhares de Kitty para Ana. Na verdade, emanava desta mulher um encanto irresistível: sedutor era o seu vestido na sua simplicidade; sedutores, os belos braços carregados de braceletes; sedutor, o pescoço firme, rodeado de pérolas; sedutores, os caracóis travessos da sua cabeleira um tanto em desordem; sedutores, os gestos das suas mãos finas, os movimentos das suas pernas nervosas; sedutor, o seu belo rosto animado. Mas havia nesta sedução qualquer coisa de terrível e de cruel.
Kitty admirava-a ainda mais que antes, ao mesmo tempo que sentia aumentar o seu sofrimento. Sentia-se esmagada e o seu rosto o dizia: ao passar junto dela, numa figura, Vronski não a reconheceu ao princípio, de tal maneira as suas feições estavam alteradas.
- Que belo baile! – disse-lhe ele, por descargo de consciência – Sim – respondeu ela.

*Tolstoi, Leo – Ana Karenine. Porto: Público, 2004, pp. 81-82


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor russo, Leo Tolstoi (também conhecido por Liev Tolstói,Léon Tolstói, Leão Tolstoi, Leo Tolstoy ou Lev Nikoláievich Tolstói) nasceu em Yasnaia Poliana a 9 de Setembro de 1828 e faleceu em Astapovo a 20 de Novembro de 1910.

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O Pavão e o Grou

Talvez vocês não saibam, mas os antigos (e principalmente os Gregos) comiam os pavões como nós hoje comemos os frangos. Consideravam-nos um excelente alimento e criavam-nos juntamente com os outros animais de galinheiro.
Um destes pavões (o pavão mais vaidoso desta terra), não contente em abrir a cauda em leque de cinco em cinco minutos, aborrecia os seus companheiros de capoeira com grandes discursos sobre a sua beleza.
-Olhem para mim, observem-me bem –dizia. –Já alguma vez viram uma ave mais bonita do que eu? Vejam que desenho, que tonalidades brilhantes, que...
Ora, o acaso quis que um grou, em viagem para regiões quentes aterrasse sobre o tecto da capoeira para aí descansar um pouco. O esvoaçar das suas asas interrompeu o pavão, que lhe dirigiu um olhar ameaçador e prosseguiu:
-... que delicadeza de tons! Às vezes só consigo sentir pena. No entanto, pensando bem, há ainda quem seja mais feio que vocês. Querem sentir-se melhor? Olhem para aquele passareco lá em cima, com aquele bico desprporcionado e... aquele pescoço inacreditável!
-Isso é para mim, amigo? –perguntou calmamente o grou.
-E para quem mais poderia ser? –respondeu o pavão.
-Bem, se fosse a ti não me inquietaria tanto. Tenho o pescoço comprido, é verdade, é mesmo assim. Quanto a ti, vais ficar com ele mais comprido quando o teu dono to cortar para te meter na panela. Vais ficar tão belo como as galinhas. E enquanto estás para aí a esgravatar e a dizer todos esses disparates, eu parto em direcção ao céu, lá para cima, para o meio das nuvens...
O grou abriu as suas grandes asas, bateu-as três ou quatro vezes e levantou voo, majestoso, a caminho do seu destino, do lado de lá do mar.

Moral da história:frequentemente, uma roupa modesta veste uma pessoa de grande valor, enquanto o luxo e a riqueza escondem muitas vezes uma nulidade.


*Esopo - As mais belas fábulas de Esopo. Porto:Civilização Editora, 1994, pp. 84-85
Recolha Colectiva

Nota:
Fabulista grego do século VI a.C.. pouco se sabe de Esopo.
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PRÓSPERO
Olhai, Senhor rei; eis diante vós Próspero, o duque espoliado de Milão; para que mais certeza tenhais de que é um príncipe vivo quem vos fala, eu vos abraço; a vós e aos vossos dou as boas-vindas.

ALONSO
Se és ou não Próspero ou se apenas és algum fantasma encantado para me iludir, como iludido até agora tenho andado – não o sei. O teu pulso bate, como o de um ser de carne e sangue; e desde que olhei para ti, senti confranger-se-me o coração como se a loucura se apoderasse de mim. É extraordinário. Renuncio ao teu ducado e imploro o teu perdão para os meus agravos… Como é porém possível que Próspero esteja vivo e se encontre aqui?

PRÓSPERO
(A Gonzalo)
Antes de mais nada, nobre amigo, consenti que abrace a vossa velhice cuja honra não tem centro nem limites.

GONZALO
Tudo isto é real ou não é? Não posso jurar nem uma coisa nem outra.

PRÓSPERO
As decepções por que passastes nesta ilha não vos deixam ainda acreditar na realidade das coisas. Sede todos bem-vindos, meus amigos. (Aparte a Sebastião e a António) Quanto a vós, meu par de patifes, o que eu devia era fazer recair a cólera de Sua Alteza sobre vós, dando-vos como traidores: não direi nada, porém.

SEBASTIÃO
(Aparte) É o Diabo que está a falar pela boca dele.


PRÓSPERO
Não. Quanto a vós, detestado senhor, a quem não posso chamar irmão, sem infectar a boca, perdoo-vos o vosso abominável crime… Perdoo a todos; exijo só o meu ducado que sereis, bem o sei, constrangido a restituir-me.



Shakespeare, William
A Tempestade. Porto: Lello & Irmãos Editores, s/d, pp.122-123


Recolha Colectiva


Nota:
Poeta e dramaturgo inglês, William Shakespeare nasceu em Stratford-upon-Avon a 23 de Abril de 1564, onde também veio a falecer a 23 de Abril do ano de 1616. É considerado o maior escritor de Língua Inglesa.

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As duas irmãs estavam muito bonitas, com os seus vestidos simples: o da Meg, prateado, de um tom entre o cinzento e o castanho, com uma faixa de veludo azulada e gola de renda; o da Jo, castanho, com uma aplicação de linho que lembrava um colarinho gomado de homem. Cada uma calçou uma luva muito bonita de cor clara, levando dobrada na mão a outra que tinha nódoas. Os sapatos de salto alto da Meg estavam-lhe muito apertados e magoavam-lhe os pés. Os dezanove ganchos de cabelo da Jo parecia estarem-lhe pregados na cabeça! Todas foram de opinião que o efeito conseguido era muito fino!
- Divirtam-se, minhas queridas...! - desejou-lhes a senhora March. - Não comam demais e venham assim que eu mandar a Hanna buscar-vos. Levam os lencinhos bonitos?
- Sim, mãe – riu Jo. - A Meg até pôs água-de-colónia no dela. E, enquanto se afastavam, acrescentou: - Tenho a certeza de que a mãe nos faria a mesma pergunta se fôssemos a fugir de um terramoto!
- A mãe tem razão, por que uma verdadeira senhora conhece-se pelo calçado, pelas luvas e pelo lencinho – declarou Meg, que herdara os mesmos gostos.
Quando chegaram à festa, sentiram-se um pouco inibidas, porque era raro irem a reuniões. Mas a senhora Gardiner cumprimentou-as amavelmente, entregando-as ao cuidado da filha mais velha.
Meg foi logo convidada para dançar, mas Jo, vendo um rapaz ruivo aproximar-se e temendo que ele a convidasse também, escondeu-se atrás de uma cortina. Entretanto, já alguém tinha escolhido aquele refúgio e, de repente, achou-se em frente do neto do senhor Laurence.
- Desculpe! Não sabia que estava aqui gente. - E Jo dispunha-se a deixar aquele esconderijo.
Mas o rapaz começou a rir e, apesar de um pouco surpreso, disse afavelmente:
- Não tem importância. Se quiser, deixe-se ficar.
- Não o incomodo?
- Absolutamente nada. Vim para aqui porque me sentia um pouco deslocado. Quase não conheço ninguém.
- Comigo passa-se o mesmo. Não se vá embora..., a não ser que queira.
Jo, sentindo o embaraço que se instalara entre eles, disse, procurando ser educada:
- Creio que já tive o prazer de o encontrar. Mora na casa ao lado da nossa, não é verdade?
- Sim, somos vizinhos. - E começou a rir, já completamente à vontade.

* Alcott, Louisa May – Mulherzinhas. Lisboa: Verbo, 1990, pp.25-26


Nota:
Escritora norte-americana, particularmente talentosa na escrita de obras de literatura juvenil, Louisa May Alcott nasceu em Filadélfia a 29 de Novembro de 1832 e faleceu em Boston a 6 de Março de 1888.


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Naufrágio e Chegada a Lilipucia

O barco bateu num rochedo e naufragou, por fim. Metemo-nos seis num bote e remámos corajosamente umas três léguas para alcançar terra. Não o conseguimos. O cansaço, a fome e as ondas encarregaram-se da triste tarefa de levar os meus companheiros. Eu, remando e depois nadando, a tudo escapei, nem sei como. Não vi ninguém, nem sinal sequer de qualquer habitação. Tudo deserto. Marginando a praia, um campo de verde relva apenas. Cansadíssimo, extenuado, deitei-me na relva macia e adormeci. A noite vinha descendo e eu não tinha energia suficiente para caminhar mais.
Longas horas dormi, sossegadamente. Já o Sol estava alto quando acordei, e a sua claridade intensa quase me ofuscou a vista. Disse de mim para mim: “Vou-me levantar e procurar de comer e sentar-me à sombra da primeira árvore que me apareça.” Era o melhor que podia fazer... Simplesmente, ao tentar erguer-me não o consegui. Estava preso pelos cabelos, que nesse tempo se usavam muito compridos, e o resto do corpo enredado num sem número de cordelinhos delgados, mas fortíssimos, que me tolhiam os movimentos. Pernas e braços, mãos e pés, senti-os fixados ao solo. Retesei os músculos, respirei fundo, quis sacudir aquelas malhas apertadas –e nada! Os cordéis entravam-me na pele e feriam-me. que aflição! Por não me ser possível fazer outra cousa, voltei a estar quieto. Uma espécie de comichão ou prurido, como que provocado pela marcha de formiga ou de mosca, incomodou-me então. De súbito, surgiu a meus olhos espantados uma criaturinha minúscula, um homenzinho da altura aí duns cinco centímetros –imagine-se! –mas bem proporcionado e todo esperto. O uniforme e as armas que ostentava convenceram-me que se tratava de um militar, de um soldado ou, talvez, de um oficial. E mais havia, decerto, à minha volta, pois um ruído confuso de passos e de exclamações me chegava aos ouvidos.


Swift, Jonathan - As viagens de Gulliver in Leão, Margarida, Filipe, Helena(org.)- “Antologia de Língua Portuguesa: 6º Ano”. Amadora: Raiz Editora, 1993, pp.71-72. (Texto adaptado)


Recolha Colectiva

Nota:
Escritor irlandês, Jonathan Swift nasceu em Dublin a 30 de Novembro de 1667 e faleceu nessa mesma cidade a 19 de Outubro de 1745.



* Obras do acervo da Biblioteca desta escola.

domingo, 5 de julho de 2009

Dia de Portugal, de Camões



Fotos da Exposição Temática alusiva às Comemorações do Dia de Portugal, de Camões e das Comunidades Portuguesas.


O Mostrengo

O mostrengo que está no fim do mar
Na noite de breu ergueu-se a voar;
A roda da nau voou três vezes,
Voou três vezes a chiar,
E disse, “Quem é que ousou entrar
Nas minhas cavernas que não desvendo,
Meus tectos negros do fim do mundo?”
E o homem do leme disse, tremendo,
“El-Rei D. João Segundo!”

“De quem são as velas onde me roço?
De quem as quilhas que vejo e ouço?”
Disse o mostrengo, e rodou três vezes,
Três vezes rodou imundo e grosso,
“Quem vem poder o que só eu posso,
Que moro onde nunca ninguém me visse
E escorro os medos do mar sem fundo?”
E o homem do leme tremeu, e disse,
“El-Rei D. João Segundo!”

Três vezes do leme as mãos ergueu,
Três vezes ao leme as reprendeu,
E disse no fim de tremer três vezes,
“Aqui ao leme sou mais do que eu:
Sou um Povo que quer o mar que é teu;
E mais que o mostrego, que me a alma teme
E roda nas trevas do fim do mundo,
Manda a vontade, que me ata ao leme,
De El-Rei D. João Segundo!”

Fernando Pessoa

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NOITE

Milhões de barcos perdidos no mar!
Perdidos na noite!
As velas rasgadas de todos os ventos
Os lemes sem tino
Vogando ao acaso
Roçando no fundo
Subindo na vaga
Tocando nas rochas!
E quantos e quantos naufragando…

Quem vem acender faróis na costa do mar bravo?
Quem?!

Manuel da Fonseca

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E O BOSQUE QUE SE FEZ BARCO

Já o meu país foi uma flor de verde pinho.
País em terra. (E semeá-lo uma aventura).
Depois abriu-se o mar como um caminho.
Depois o bosque se fez barco e o barco arado
Dessa nova e fatal agricultura:
Colher no mar o fruto nunca semeado.

Manuel Alegre

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Linda Inês Inês de Manto

Teceram-lhe o manto
Para ser de morta
Assim como o pranto
Se tece na roca

Assim como o trono
E como o espaldar
Foi igual o modo
De a chorar

Só a morte trouxe
Todo o veludo
No corte da roupa
No cinto justo

Também como o choro
Lhe deram um estrado
Um firmal de ouro
Um corpo exumado

O vestido dado
Como a choravam
Era de brocado
Não era escarlata

Também de pranto
A vestiam toda
Era como um manto
Mais fino que roupa.

Fiama Hasse Pais Brandão

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Fala apócrifa de Camões

É inútil buscarem o meu signo
procuram-me em ruas ou retratos
sequer em grutas gritos manuscritos
muito menos em fósseis ou falsas

pistas que de meus ossos não existem
É inútil julgarem-me comparsa
De quem quer que julgue viver comigo
Já que em lugar algum terei passado

comigo mais que um prazo muito exímio
mais ambíguo aliás e mais escasso
que o vivido com Bembo ou com Virgílio

com Petrarca Ariosto ou Garcilaso
Só estes os contei por meus amigos
E só de astros que tais rompe o meu rasto

David Mourão-Ferreira

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Gruta de Camões

Dentro de mim sobe a imagem dessa gruta
Cujo silêncio ainda escuta
Os teus gestos e os teus passos.
Aí, diante do mar como tu transbordante

De confissão e segredo,
Choraste a face pura
Das brancas amadas
Mortas tão cedo

Sophia Mello Breyner Andresen

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Camões dirige-se aos seus contemporâneos

Podereis roubar-me tudo:
as ideias, as palavras, as imagens,
e também as metáforas, os temas, os motivos,
os símbolos, e a primazia
nas dores sofridas de uma língua nova,
no entendimento de outros, na coragem
de combater, julgar, de penetrar
em recessos de amor para que sois castrados.
E podereis depois não me citar,
suprimir-me, ignorar-me, aclamar até
outros ladrões mais felizes.
Não importa nada: que o castigo
será terrível. Não só quando
vossos netos não souberem já quem sois
terão de me saber melhor ainda
do que fingis que não sabeis,
como tudo, tudo o que laboriosamente pilhais,
reverterá para o meu nome. E mesmo será meu,
tido por meu, contado como meu,
até mesmo aquele pouco e miserável
que, só por vós. sem roubo, haveríeis feito.
Nada tereis, mas nada: nem os ossos,
que um vosso esqueleto há-de ser buscado,
para passar por meu. E para outros ladrões,
iguais a vós, de joelhos, porem flores no túmulo.


Jorge de Sena


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CAMÕES NÁUFRAGO

Cedendo à fúria de Neptuno irado
Soçobra a nau que o grão tesouro encerra;
Luta coa morte na espumosa serra
O divino cantor do Gama ousado.

Ai do Canto mimoso a Lísia dado!...
Camões, grande Camões, embalde a terra
Teu braço forte, nadador aferra
Se o Canto lá ficou no mar salgado.

Chorai, Lusos, chorai! Tu morre, ó Gama,
Foi-se a tua glória... Não; lá vai rompendo
Coa dextra o mar a lusa fama.

Almeida Garrett

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Glosa de Camões

Até que no tempo cesse anónimo
O ténue sopro que ao tempo dou.
Até que o tempo oblitere o vestígio
leve que sobre o esquecimento paira
e mais não é que fino e branco
pó na brancura calcinada,
até que o tempo olvide a voz
que nele teimosa tece e enreda
a frágil teia e triturando o som
em eco fruste me converta
e insatisfeito ainda reduza o eco
a muda vibração silente,
da cinza escura tornarei por quem
de viver triste sou contente.

Rui Knopfli

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Falso retrato de Camões

Era Camões? Faltava-lhe um dos olhos,
Tinha a barba completa,
O laurel do poeta
A gola aos folhos.

As mãos, não nas mostrava:
Trazia numa a espada? Noutra a pena?
(E a tuba? E a avena?
E o rolo de papeis salvo da onda brava?)

Era um busto, uma efígie, um cartaz de parede.
Era um livro fechado,
Escrito na poeira do passado.
Fonte interdita de nenhuma sede.

Era isto, era aquilo, era o que quis
Quem no quis inventar
Expulso de si próprio, a desprezar
Pela flor, a semente e a raiz.

Estava ali para servir de escudo
(E ele, a espada!),
Para dizer cultura celebrada
(E ele, mudo!).

Estava ali para servir de réu.
(Não, não estava ali:
Estava em quem, por amor, o chamou para si
E o leu).


António Manuel Couto Viana

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A LUÍS DE CAMÕES

Sem lástima e sem ira o tempo arromba
As heróicas espadas. Pobre e triste
Á tua pátria nostálgica voltaste,
Ó capitão, para nela morrer
E com ela. No mágico deserto
Tinha-se a flor de Portugal perdido
E o áspero espanhol, antes vencido,
Ameaçava o seu costado aberto.
Que tudo o perdido, o Ocidente
E o Oriente, o aço e a bandeira,
Perduraria (alheio a toda a humana Mutação) na tua Eneida lusitana.


Jorge Luís Borges

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Camões

Nem tenho versos, cedro desmedido,
Da pequena floresta portuguesa!
Nem tenho versos, de tão comovido
Que fico a olhar de longe tal grandeza.

Quem te pode cantar, depois do Canto
Que deste à pátria, que to não merece?
O sol da inspiração que acendo e que levanto
Chega aos teus pés e como que arrefece.

Chamar-te génio é justo, mas é pouco.
Chamar-te herói, é dar-te um só poder.
Poeta dum império que era louco,
Foste louco a cantar e louco a combater.

Sirva, pois, de poema este respeito
Que te devo e confesso,
Única nau do sonho insatisfeito
Que não teve regresso.

Miguel Torga

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Luís, homem estranho

Luís, homem estranho, que pelo verbo
és, mais que amado, o próprio amor
latejante, esquecido, revoltado,
submisso, renascente, reflorindo
em cem mil corações multiplicado.

És a linguagem. Dor particular
deixa de existir para fazer-se
dar de todos os homens, musical,
na voz de órfico acento, peregrina.

Que pássaro lascivo se intercala
no queixume subtil de tua estrofe
e não se sabe mais se é dor, delicia,
e espinho, afago, e morte, renascença?
Volúpia de gemer, e do gemido
destilar a canção consoladora
a quantos de consolo careciam
e jamais a fariam por si mesmos ?
(Amaldiçoado dia de nascer
que em bênçãos para nós se converteu!)
já tenho uma palavra pré-escrita
que tudo exprime quanto em mim se turva.

Pelos antigos e pelos vindouros,
foste discurso de geral amor,
Camões – oh som de vida ressoando
em cada tua sílaba fremente
de amor e guerra e sonho entrelaçados!


Carlos Drummond de Andrade

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Luís, o poeta, salva a nado o poema

Era uma vez
um português
de Portugal.

O nome Luís
há-de bastar
toda a nação
ouviu falar.

Estala a guerra
e Portugal
chama Luís
para embarcar.

Na guerra andou
a guerrear
e perde um olho
por Portugal.

Livre da morte
pôs-se a contar
o que sabia
de Portugal.

Dias e dias
grande pensar
juntou Luís
a recordar.
Ficou um livro
ao terminar.

muito importante
para estudar:
Ia num barco
ia no mar
e a tormenta
vá d'estalar.

Mais do que a vida
há-de guardar
o barco a pique
Luís a nadar.

Fora da água
um braço no ar
na mão o livro
há-de salvar.

Nada que nada
sempre a nadar
livro perdido
no alto mar.

_ Mar ignorante
que queres roubar?
A minha vida
ou este cantar?
A vida é minha
ta posso dar
mas este livro
há-de ficar.

Estas palavras
hão-de durar
por minha vida
quero jurar.
Tira-me as forças
podes matar
a minha alma
sabe voar.

Sou português
de Portugal
depois de morto
não vou mudar.

Sou português
de Portugal
acaba a vida
e sigo igual.

Meu corpo é Terra
de Portugal
e morto é ilha
no alto mar.

Há portugueses
a navegar
por sobre as ondas
me hão-de achar.

A vida morta
aqui a boiar
mas não o livro
se há-de molhar.

Estas palavras
vão alegrar
a minha gente
de um só pensar.

À nossa terra
irão parar
lá toda a gente
há-de gostar.

Só uma coisa
vão olvidar
o seu autor
aqui a nadar.

É fado nosso
é nacional
não há portugueses
há Portugal.

Saudades tenho
mil e sem par
saudade é vida
sem se lograr.

A minha vida
vai acabar
mas estes versos
hão-de gravar.

O livro é este
é este o canto
assim se pensa
em Portugal.

Depois de pronto
faltava dar
a minha vida
para o salvar.

Almada Negreiros

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Camões, grande Camões

Camões, grande Camões, quão semelhante
Acho teu fado ao meu, quando os cotejo!
Igual causa nos fez, perdendo o Tejo,
Arrostar c'o sacrílego gigante;

Como tu, junto ao Ganges sussurrante,
Da penúria cruel no horror me vejo;
Como tu, gostos vãos, que em vão desejo,
Também carpindo estou, saudoso amante.

Ludíbrio, como tu, da Sorte dura
Meu fim demando ao Céu, pela certeza
De que só terei paz na sepultura.

Modelo meu tu és, mas... oh, tristeza!...
Se te imito nos transes da Ventura,
Não te imito nos dons da Natureza.

Bocage

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Camões e a tença

Irás ao paço. Irás pedir que a tença
Seja paga na data combinada.
Este país te mata lentamente
País que tu chamaste e não responde
País que tu nomeias e não nasce.

Em tua perdição se conjuraram
Calúnias desamor inveja ardente
E sempre os inimigos sobejaram
A quem ousou ser mais que a outra gente.

E aqueles que invocaste não te viram
Porque estavam curvados e dobrados
Pela paciência cuja mão de cinza
Tinha apagado os olhos no seu rosto.

Irás ao paço irás pacientemente
Pois não te pedem canto mas paciência.

Este país te mata lentamente.


Sophia de Mello Breyner Andresen

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Poema para Luís de Camões

Meu amigo, meu espanto, meu convívio,
Quem pudera dizer-te estas grandezas,
Que eu não falo do mar, e o céu é nada
Se nos olhos me cabe.
A terra basta onde o caminho pára,
Na figura do corpo está a escala do mundo.
Olho cansado as mãos, o meu trabalho,
E sei, se tanto um homem sabe,
As veredas mais fundas da palavra
E do espaço maior que, por trás dela,
São as terras da alma.
E também sei da luz e da memória,
Das correntes do sangue o desafio
Por cima da fronteira e da diferença.
E a ardência das pedras, a dura combustão
Dos corpos percutidos como sílex,
E as grutas do pavor, onde as sombras
De peixes irreais entram as portas
Da última razão, que se esconde
Sob a névoa confusa do discurso.
E depois o silêncio, e a gravidade
Das estátuas jazentes, repousando,
Não mortas, não geladas, devolvidas
À vida inesperada, descoberta,
E depois, verticais, as labaredas
Ateadas nas frontes como espadas,
E os corpos levantados, as mãos presas,
E o instante dos olhos que se fundem
Na lágrima comum. Assim o caos
Devagar se ordenou entre as estrelas.

Eram estas as grandezas que dizia
Ou diria o meu espanto, se dizê-las
Já não fosse este canto.

José Saramago

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Dia da Raça

Não vejo medalhas,
nem marchas militares.
Vejo mil soldados
na rua a passear...
Vejo mil famílias
que passam, comendo
coisas e tremoços
- Como ia dizendo
tudo se passou
na Praça do Império
Mas quanto à-vontade
nos rostos serenos!

E como não sou
presente ou pretérito
regressei a casa
nem que sim ou pós...
Não vejam na frase
nenhuma malícia.
Eu sou duma raça
futura na História.
E proclamo, enquanto
bebo vinho verde:
Avante, meu povo!
Canta a «Portuguesa»!
Agora repouso,
relembrando os dias.
Releio Camões,
repenso os Lusíadas.

Ruy Cinatti

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Camões

Falam de
Camões como falaram os
que desconheciam a poesia
Produzem cristais baços do passado
usam Camões como um nome perdido
a poesia não pode ser motivo
de júbilo aos que a
traem
Camões não é um túmulo perdido
num passado senil: Que não o cite
em vão quem desconhece
que cita um nome vivo.

Gastão Cruz


Estavas, linda Inês, posta em sossego

«Um, caso triste aconteceu então, um caso de infelicidade e crueldade, mas que mostra quanto é sincero e terno, sendo forte e corajoso, o coração dos Portugueses…
«Tinha D. Afonso IV um filho, D. Pedro, rapaz alegre e destemido, que gostava muito de uma dama da Rainha D. Inês de Castro.
«Em Coimbra, numa quinta a que mais tarde se deu o nome de Quinta das Lágrimas – pelos trágicos acontecimentos que lá se deram – vivia em sossego a linda D. Inês.
«Ora o Príncipe não podia casar com uma senhora qualquer, mas só com uma Princesa de sangue real. Assim o exigiam nesse tempo os usos e normas da corte. Se Pedro não os cumprisse, não o deixariam talvez ser rei.
«Por isso, muito se afligia D. Afonso, vendo o filho tão preso dos encantos de D. Inês não querendo casar-se com nenhuma Princesa verdadeira.
«Aconselha-se o Rei com os sues ministros – e resolve tirar a vida à pobre D. Inês, cujo único pecado e crime era amar o seu príncipe.
«Vão buscá-la a Coimbra e trazem-na arrastada à presença do Rei.
«Apertando muito ao peito os filhinhos que tinha de D. Pedro, Inês chora, geme, pede e suplica piedade, não para ela, mas para os filhos, que, ficando órfãos, que perdendo a mãe, tudo perderiam. Roga a D. Afonso que antes a exile para um deserto, mesmo entre feras bravas, mas que não roube o seu amor às criancinhas que traz ao colo, inocentes de todo o mal e toda a culpa…
«Ainda se comove o rei, mas não se comovem os conselheiros.
«Demais a mais, ela era castelhana, e o povo não gostava das mulheres vindas do país, cujo povo tinha sido e era seu inimigo. Uma rainha castelhana era coisa que não queriam os Portugueses; mas, se tivessem visto Inês chorar e abraçada aos filhos, decerto lhe teriam perdoado…
«Os ministros é que não perdoavam… Arrancam das espadas de aço fino, e trespassam o seio da formosa Inês.
«Mas, assim que ela morreu, chorou-a todo o povo, até a choraram os seus mais cruéis inimigos, tão nova e bonita era a apaixonada de D. Pedro …


Barros, João deOs Lusíadas contados às crianças. Lisboa: Livraria Sá da Costa Editora, 2003, pp. 62-65.

Recolha Colectiva





Em prisões baixas fui um tempo atado

Em prisões baixas fui um tempo atado;
Vergonhoso castigo de meus erros:
Inda agora arrojando levo os ferros,
Que a morte, a meu pesar, tem já quebrado.

Sacrifiquei a vida a meu cuidado,
Que Amor não quer cordeiros nem bezerros;
Vi mágoas, vi misérias, vi desterros:
Parece-me que estava assi ordenado.

Contentei-me com pouco, conhecendo
Que era o contentamento vergonhoso,
Só por ver que coisa era viver ledo.

Mas minha Estrela, que eu já agora entendo,
A Morte cega, e o Caso duvidoso
Me fizeram de gostos haver medo.

Luís de Camões

*************************************

Verdes são os campos

Verdes são os campos,
De cor de limão:
Assim são os olhos
Do meu coração.


Campo, que te estendes
Com verdura bela;
Ovelhas, que nela
Vosso pasto tendes,
De ervas vos mantendes
Que traz o Verão,
E eu das lembranças
Do meu coração.

Gados que pasceis
Com contentamento,
Vosso mantimento
Não no entendereis;
Isso que comeis
Não são ervas, não:
São graças dos olhos
Do meu coração.

Luís de Camões

*************************************
Qual tem a borboleta por costume

Qual tem a borboleta por costume,
Que, enlevada na luz da acesa vela,
Dando vai voltas mil, até que nela
Se queima agora, agore se consume,

Tal eu correndo vou ao vivo lume
Desses olhos gentis, Aónia bela;
E abraso-me por mais que com cautela
Livrar-me a parte racional presume.

Conheço o muito a que se atreve a vista,
O quanto se levanta o pensamento,
O como vou morrendo claramente;

Porém, não quer Amor que lhe resista,
Nem a minha alma o quer; que em tal tormento,
Qual em glória maior, está contente.

Luís de Camões

*********************************************
Senhora minha, se de pura inveja

Senhora minha, se de pura inveja
Amor me tolhe a vista delicada,
A cor, de rosa e neve semeada,
E dos olhos a luz que o Sol deseja,

Não me pode tolher que vos não veja
Nesta alma, que ele mesmo vos tem dada,
Onde vos terei sempre debuxada,
Por mais cruel inimigo que me seja.

Nela vos vejo, e vejo que não nasce
Em belo e fresco prado deleitoso
Senão flor que dá cheiro a toda a serra.

Os lírios tendes nu~a e noutra face.
Ditoso quem vos vir, mas mais ditoso
Quem os tiver, se há tanto bem na terra!

Luís de Camões

**********************************

Se quando vos perdi, minha esperança

Se quando vos perdi, minha esperança,
A memória perdera juntamente
Do doce bem passado e mal presente,
Pouco sentira a dor de tal mudança.

Mas Amor, em quem tinha confiança,
Me representa mui miudamente
Quantas vezes me vi ledo e contente,
Por me tirar a vida esta lembrança.

De cousas de que apenas um sinal
Havia, porque as dei ao esquecimento,
Me vejo com memórias perseguido.

Ah dura estrela minha! Ah grão tormento!
Que mal pode ser mor, que no meu mal
Ter lembranças do bem que é já passado?

Luís de Camões


Recolha de Manuel Silva

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Eu cantarei de amor tão docemente

Eu cantarei de amor tão docemente,
Por uns termos em si tão concertados,
Que dois mil acidentes namorados
Faça sentir ao peito que não sente.

Farei que amor a todos avivente,
Pintando mil segredos delicados,
Brandas iras, suspiros magoados,
Temerosa ousadia e pena ausente.

Também, Senhora, do desprezo honesto
De vossa vista branda e rigorosa,
Contentar-me-ei dizendo a menor parte.

Porém, pera cantar de vosso gesto
A composição alta e milagrosa
Aqui falta saber, engenho e arte.

Luís de Camões

************************************

Acha a tenra mocidade

Acha a tenra mocidade
Prazeres acomodados,
E logo a maior idade
Já sente por pouquidade
Aqueles gostos passados.
Um gosto que hoje se alcança,
Amanhã já não o vejo;
Assim nos traz a mudança
De esperança em esperança
E de desejo em desejo.
Mas em vida tão escassa
Que esperança será forte?
Fraqueza da humana sorte,
Que quanto da vida passa
Está receitando a morte!

Luís de Camões

**************************************

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança

De vós me parto, ó vida, e em tal mudança
Sinto vivo da morte o sentimento.
Não sei para que é ter contentamento,
Se mais há de perder quem mais alcança!

Mas dou-vos esta firme segurança:
Que, posto que me mate o meu tormento,
Pelas águas do eterno esquecimento
Segura passará minha lembrança.

Antes sem vós meus olhos se entristeçam,
Que com cousa outra alguma se contentem:
Antes os esqueçais, que vos esqueçam.

Antes nesta lembrança se atormentem,
Que com esquecimento desmereçam
A glória que em sofrer tal pena sentem.

Luís de Camões

************************************

Males, que contra mim vos conjurastes

Males, que contra mim vos conjurastes,
Quanto há de durar tão duro intento?
Se dura, por que dure meu tormento,
Baste-vos quanto já me atormentastes.

Mas se assim porfiais, porque cuidastes
Derribar o meu alto pensamento,
Mais pode a causa dele, em que o sustento,
Que vós, que dela mesma o ser tomastes.

E pois vossa tenção com minha morte
É de acabar o mal destes amores,
Dai já fim a tormento tão comprido.

Assim de ambos contente será a sorte:
Em vós por acabar-me, vencedores,
Em mim porque acabei de vós vencido.

Luís de Camões

***************************************

Porque quereis, Senhora, que ofereça

Porque quereis, Senhora, que ofereça
A vida a tanto mal como padeço?
Se vos nasce do pouco que eu mereço,
Bem por nascer está quem vos mereça.

Entendei que por muito que vos peça,
Poderei merecer quanto vos peço;
Pois não consente Amor que em baixo preço
Tão alto pensamento se conheça.

Assim que a paga igual de minhas dores
Com nada se restaura, mas deveis-ma
Por ser capaz de tantos desfavores.

E se o valor de vossos amadores
Houver de ser igual convosco mesma,
Vós só convosco mesma andai de amores.

Luís de Camões


Recolha de Olga Pereira

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Ditosa Ave

Quem fosse acompanhando juntamente
Por esses verdes campos a avezinha,
Que despois de perder um bem que tinha,
Não sabe mais que cousa é ser contente!

E quem fosse apartando-se da gente,
Ela por companheira e por vizinha,
Me ajudasse a chorar a pena minha,
E eu a ela também a que ela sente!

Ditosa ave! que ao menos, se a natura
A seu primeiro bem não dá segundo,
Dá-lhe o ser triste a seu contentamento.

Mas triste quem de longe quis ventura
Que para respirar lhe falte o vento,
E para tudo, enfim, lhe falte o mundo!


Luís de Camões


****************************************

Enquanto quis Fortuna que tivesse

Enquanto quis Fortuna que tivesse
Esperança de algum contentamento,
O gosto de um suave pensamento
Me fez que seus efeitos escrevesse.

Porém, temendo Amor que aviso desse
Minha escritura a algum juízo isento,
Escureceu-me o engenho co'o tormento,
Para que seus enganos não disesse

Ó vós que Amor obriga a ser sujeitos
A diversas vontades! Quando lerdes
Num breve livro casos tão diversos,

Verdades puras são e não defeitos;
E sabei que, segundo o amor tiverdes,
Tereis o entendimento de meus versos.

Luís de Camões

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Coitado! que em um tempo choro e rio

Coitado! que em um tempo choro e rio;
Espero e temo, quero e aborreço;
Juntamente me alegro e entristeço;
Du~a cousa confio e desconfio.

Voo sem asas; estou cego e guio;
E no que valho mais menos mereço.
Calo e dou vozes, falo e emudeço,
Nada me contradiz, e eu aporfio.

Queria, se ser pudesse, o impossível;
Queria poder mudar-me e estar quedo;
Usar de liberdade e estar cativo;

Queria que visto fosse e invisível;
Queira desenredar-me e mais me enredo:
Tais os extremos em que triste vivo!

Luís de Camões

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Erros Meus, Má Fortuna, Amor Ardente

Erros meus, má Fortuna, Amor ardente
Em minha perdição se conjuraram;
Os erros e a Fortuna sobejaram,
Que para mim bastava Amor somente.

Tudo passei; mas tenho tão presente
A grande dor das cousas que passaram,
Que já as frequências suas me ensinaram
A desejos deixar de ser contente.

Errei todo o discurso de meus anos;
Dei causa a que a Fortuna castigasse
As minhas mal fundadas esperanças.

De Amor não vi senão breves enganos.
Oh! Quem tanto pudesse, que fartasse
Este meu duro Génio de vinganças!


Luís de Camões

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Sete anos de pastor Jacob servia

Sete anos de pastor Jacob servia
Labão, pai de Raquel, serrana bela;
Mas não servia ao pai, servia a ela,
Que a ela só por prémio pretendia.

Os dias na esperança de um só dia
Passava, contentando-se com vê-la;
Porém o pai, usando de cautela,
Em lugar de Raquel lhe deu Lia.

Vendo o triste pastor que com enganos
Assim lhe era negada a sua pastora,
Como se a não tivera merecida;

Começou a servir outros sete anos,
Dizendo: − Mais servira, senão fora
Para tão longo amor tão curta a vida.

Luís de Camões

Recolha de Luís Pereira

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De quem o mesmo Amor não se Apartava

Já a roxa e clara Aurora destroçava
Os seus cabelos de ouro delicados,
E das flores os campos esmaltados
Com cristalino orvalho borrifava;

Quando o formoso gado se espalhava
De Sílvio e de Laurente pelos prados;
Pastores ambos, e ambos apartados
De quem o mesmo Amor não se apartava.

Com verdadeiras lágrimas, Lactente,
− Não sei − dizia − ó Ninfa delicada,
Porque não morre já quem vive ausente,

Pois a vida sem ti não presta nada.
Responde Sílvio: − Amor não o consente,
Que ofende as esperanças da tornada.

Luís de Camões

**************************************

Tomou-me vossa vista soberana

Tomou-me vossa vista soberana
Aonde tinha as armas mais à mão,
Por mostrar que quem busca defensão
Contra esses belos olhos, que se engana.

Por ficar da vitória mais ufana,
Deixou-me armar primeiro da razão;
Cuidei de me salvar, mas foi em vão,
Que contra o Céu não vale defensa humana.

Mas porém, se vos tinha prometido
O vosso alto destino esta vitória,
Ser-vos tudo bem pouco está sabido.

Que posto que estivesse apercebido,
Não levais de vencer-me grande glória;
Maior a levo eu de ser vencido.

Luís de Camões

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O fogo que na branda cera ardia

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.
O fogo que na branda cera ardia,

O fogo que na branda cera ardia,
Vendo o rosto gentil que na alma vejo.
Se acendeu de outro fogo do desejo,
Por alcançar a luz que vence o dia.

Como de dois ardores se incendia,
Da grande impaciência fez despejo,
E, remetendo com furor sobejo,
Vos foi beijar na parte onde se via.

Ditosa aquela flama, que se atreve
Apagar seus ardores e tormentos
Na vista do que o mundo tremer deve!

Namoram-se, Senhora, os Elementos
De vós, e queima o fogo aquela nave
Que queima corações e pensamentos.

Luís de Camões

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Quando me quer enganar

Quando me quer enganar
A minha bela perjura,
Pera mais me confirmar
O que quer certificar,
Pelos seus olhos mo jura.
Como meu contentamento
Todo se rege por eles,
Imagina o pensamento
Que se faz agravo a eles
Não crer tão grão juramento.

Porém, como em casos tais
Ando já visto e corrente,
Sem outros certos sinais,
Quanto me ela jura mais,
Tanto mais cuido que mente.
Então, vendo-lhe ofender
Uns tais olhos como aqueles,
Deixo-me antes tudo crer,
Só pela não constranger
A jurar falso por eles.

Luís de Camões

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Em amor não há senão enganos

Suspiros inflamados que cantais
A tristeza com que eu vivi tão cedo;
Eu morro e não vos levo, porque hei medo
Que ao passar do Leteo vos percais.

Escritos para sempre já ficais
Onde vos mostrarão todos co'o dedo,
Como exemplo de males; e eu concedo
Que para aviso de outros estejais.

Em quem, pois, virdes largas esperanças
De Amor e da Fortuna (cujos danos
Alguns terão por bem-aventuranças),

Dizei-lhe que os servistes muitos anos,
E que em Fortuna tudo são mudanças,
E que em Amor não há senão enganos.

Luís de Camões

Recolha de Isaura Pereira

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Amor, que o gesto humano na alma escreve

Amor, que o gesto humano na alma escreve,
Vivas faíscas me mostrou um dia,
Donde um puro cristal se derretia
Por entre vivas rosas e alva neve.

A vista, que em si mesma não se atreve,
Por se certificar do que ali via,
Foi convertida em fonte, que fazia
A dor ao sofrimento doce e leve.

Jura Amor que brandura de vontade
Causa o primeiro efeito; o pensamento
Endoudece, se cuida que é verdade.

Olhai como Amor gera, num momento
De lágrimas de honesta piedade,
Lágrimas de imortal contentamento.

Luís de Camões

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Quantas vezes do fuso se esquecia

Quantas vezes do fuso se esquecia
Daliana, banhando o lindo seio,
Outras tantas de um áspero receio
Salteado Laurénio a cor perdia.

Ela, que a Sílvio mais que a si queria,
Para podê-lo ver não tinha meio.
Ora como curara o mal alheio
Quem o seu mal tão mal curar podia?

Ele, que viu tão clara esta verdade,
Com soluços dizia (que a espessura
Inclinavam, de mágoa, a piedade):

Como pode a desordem da natura
Fazer tão diferentes na vontade
Aos que fez tão conformes na ventura?

Luís de Camões

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Se me vem tanta glória só de olhar-te

Se me vem tanta glória só de olhar-te,
ă pena desigual deixar de ver-te;
Se presumo com obras merecer-te,
Grão paga de um engano é desejar-te.

Se aspiro por quem és a celebrar-te,
Sei certo por quem sou que hei-de ofender-te;
Se mal me quero a mim por bem querer-te,
Que prémio querer posso mais que amar-te?

Porque um tão raro amor não me socorre?
Ó humano tesouro! Ó doce glória!
Ditoso quem à morte por ti corre!

Sempre escrita estarás nesta memória;
E esta alma viverá, pois por ti morre,
Porque ao fim da batalha é a vitória.

Luís de Camões

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Entre estes penedos


Verdes são as hortas
com rosas e flores;
moças que as regam
matam-me d'amores.

Entre estes penedos
que daqui parecem,
verdes ervas crecem,
altos arvoredos.
Vai destes rochedos
água com que as flores
d'outras são regadas
que matam d'amores.

Co a água que cai
daquela espessura,
outra se mestura
que dos olhos sai:
toda junta vai
regar brancas flores,
onde há outros olhos
que matam d'amores.

Celestes jardins,
as flores, estrelas,
horteloas delas
são uns serafins.
Rosas e jasmins
de diversas cores;
Anjos que as regam
matam-me d'amores.

Luís de Camões

Recolha de Ricardo Pinto

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Vencido está de amor

Vencido está de amor
O mais que pode ser
Sujeita a vos servir e
Oferecendo tudo

Contente deste bem,
Outra vez renovar
A causa que me guia
Ou hora em que se viu

Mil vezes desejando
Com essa pretensão
Tão estranha, tão doce,

Voltando só por vós
Jurando não seguir
Sem ser no vosso amor

Meu pensamento
Vencida a vida,
Instituída,
A vosso intento.

Louva o momento
Tão bem perdida;
A tal ferida,
Seu perdimento.

Está segura
Nesta empresa,
Honrosa e alta

Outra ventura,
Rara firmeza,
Achado em falta.
Luís de Camões

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Quem presumir, Senhora, de louvar-vos

Quem presumir, Senhora, de louvar-vos
Com humano saber, e não divino,
Ficará de tamanha culpa dino
Quamanha ficais sendo em contemplar-vos.

Não pretenda ninguém de louvor dar-vos,
Por mais que raro seja, e peregrino:
Que vossa fermosura eu imagino
Que Deus a ele só quis comparar-vos.

Ditosa esta alma vossa, que quisestes
Em posse pôr de prenda tão subida,
Como, Senhora, foi a que me destes.

Melhor a guardarei que a própria vida;
Que, pois mercê tamanha me fizestes,
De mim será jamais nunca esquecida.

Luís de Camões

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Bem Sei, Amor, que é Certo o que Receio


Bem sei, Amor, que é certo o que receio;
Mas tu, porque com isso mais te apuras,
De manhoso, mo negas, e mo juras
Nesse teu arco de ouro; e eu te creio.

A mão tenho metida no meu seio,
E não vejo os meus danos às escuras;
Porém porfias tanto e me asseguras,
Que me digo que minto, e que me enleio.

Nem somente consinto neste engano,
Mas inda to agradeço, e a mim me nego
Tudo o que vejo e sinto de meu dano.

Oh poderoso mal a que me entrego!
Que no meio do justo desengano
Me possa inda cegar um moço cego?

Luís de Camões

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Sempre a Razão vencida foi de Amor

Sempre a Razão vencida foi de Amor;
Mas, porque assim o pedia o coração,
Quis Amor ser vencido da Razão.
Ora que caso pode haver maior!

Novo modo de morte e nova dor!
Estranheza de grande admiração,
Que perde suas forças a afeição,
Por que não perca a pena o seu rigor.

Pois nunca houve fraqueza no querer,
Mas antes muito mais se esforça assim
Um contrário com outro por vencer.

Mas a Razão, que a luta vence, enfim,
Não creio que é Razão; mas há-de ser
Inclinação que eu tenho contra mim.

Luís de Camões

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Posto me tem Fortuna em tal estado

Posto me tem Fortuna em tal estado,
E tanto a seus pés me tem rendido!
Não tenho que perder já, de perdido;
Não tenho que mudar já, de mudado.

Todo o bem pera mim é acabado;
Daqui dou o viver já por vivido;
Que, aonde o mal é tão conhecido,
Também o viver mais será escusado,

Se me basta querer, a morte quero,
Que bem outra esperança não convém;
E curarei um mal com outro mal.

E, pois do bem tão pouco bem espero,
Já que o mal este só remédio tem,
Não me culpem em querer remédio tal.

Luís de Camões


Recolha de João Fernandes

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Repouso na alegria comedido

Leda serenidade deleitosa,
Que representa em terra um paraíso;
Entre rubis e perlas, doce riso,
Debaixo de ouro e neve, cor-de-rosa;

Presença moderada e graciosa,
Onde ensinando estão despejo e siso
Que se pode por arte e por aviso,
Como por natureza, ser formosa;

Fala de que ou já vida, ou morte pende,
Rara e suave, enfim, Senhora, vossa,
Repouso na alegria comedido:

Estas as armas são com que me rende
E me cativa Amor; mas não que possa
Despojar-me da glória de rendido.


Luís de Camões

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Alma minha gentil, que te partiste

Alma minha gentil, que te partiste
Tão cedo desta vida, descontente,
Repousa lá no Céu eternamente
E viva eu cá na terra sempre triste.

Se lá no assento etéreo, onde subiste,
Memória desta vida se consente,
Não te esqueças daquele amor ardente
Que já nos olhos meus tão puro viste.

E se vires que pode merecer-te
Algu~a cousa a dor que me ficou
Da mágoa, sem remédio, de perder-te,

Roga a Deus, que teus anos encurtou,
Que tão cedo de cá me leve a ver-te,
Quão cedo de meus olhos te levou.

Luís de Camões

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Se pena por amar-vos se merece

Se pena por amar-vos se merece,
Quem dela livre está? ou quem isento?
Que alma, que razão, que entendimento
Em ver-vos se não rende e obedece?

Que mor glória na vida se oferece
Que ocupar-se em vós o pensamento?
Toda a pena cruel, todo o tormento
Em ver-vos se não sente, mas esquece.

Mas se merece pena quem amando
Contínuo vos está, se vos ofende,
O mundo matareis, que todo é vosso.

Em mim, Senhora, podeis ir começando,
Que claro se conhece e bem se entende
Amar-vos quanto devo e quanto posso.

Luís de Camões

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Passo por meus trabalhos tão isento

Passo por meus trabalhos tão isento
De sentimento grande nem pequeno,
Que só por a vontade com que peno
Me fica Amor devendo mais tormento.

Mas vai-me Amor matando tanto a tento,
Temperando a triaga c'o veneno,
Que do penar a ordem desordeno,
Porque não mo consente o sofrimento.

Porém se esta fineza o Amor sente
E pagar-me meu mal com mal pretende,
Torna-me com prazer como ao sol neve.

Mas se me vê co'os males tão contente,
Faz-se avaro da pena, porque entende
Que quanto mais me paga, mais me deve.

Luís de Camões

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Jurando de não Mais em Outra Ver-me

Como quando do mar tempestuoso
O marinheiro todo trabalhado,
De um naufrágio cruel saindo a nado,
Só de ouvir falar nele está medroso;

Firme jura que o vê-lo bonançoso
Do seu lar o não tire sossegado;
Mas esquecido já do horror passado,
Dele a fiar se torna cobiçoso;

Assi, Senhora, eu que da tormenta
De vossa vista fujo, por salvar-me,
Jurando de não mais em outra ver-me;

Com a alma que de vós nunca se ausenta,
Me torno, por cobiça de ganhar-me,
Onde estive tão perto de perder-me.


Luís de Camões


Recolha de Elisabete Fernandes

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A verdura amena

Se Helena apartar do
campo seus olhos,
nascerão abrolhos.


A verdura amena,
gados, que pasceis,
sabei que a deveis
aos olhos de Helena.
Os ventos serena,
faz flores de abrolhos
o ar de seus olhos.

Faz serras floridas,
faz claras as fontes:
se isto faz nos montes,
que fará nas vidas?
Trá-las suspendidas
como ervas em molhos,
na luz de seus olhos.

Os corações prende
com graça inumana
de cada pestana
ü alma lhe pende.
Amor se lhe rende,
e, posto em giolhos,
pasma nos seus olhos

Luís de Camões

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Canção II


Se este meu pensamento,
como é, doce e suave,
de alma pudesse vir gritando fora,
mostrando seu tormento
cruel, áspero e grave,
diante de vós só, minha Senhora,
pudera ser que agora
o vosso peito duro
tornara manso e brando.
E eu que sempre ando
pássaro solitário, humilde, escuro,
tornado um cisne puro,
brando e sonoro pelo ar voando,
com canto manifesto,
pintara meu tormento e vosso gesto.

Pintara os olhos belos
que trazem nas mininas
o Minino que os seus neles cegou;
e os dourados cabelos
em tranças de ouro finas
a quem o Sol seus raios abaixou;
a testa que ordenou
Natura tão fermosa;
o bem proporcionado
nariz, lindo, afilado,
que a cada parte tem a fresca rosa;
a boca graciosa
– que querê-la louvar é escusado –,
enfim, é um tesouro:
os dentes, perlas; as palavras, ouro.

Vira-se claramente,
ó Dama delicada,
que em vós se esmerou a Natureza;
e eu, de gente em gente,
trouxera trasladada
em meu tormento vossa gentileza.
Somente a aspereza
de vossa condição,
Senhora, não dissera,
por que se não soubera
que em vós podia haver algum senão.
E se alguém, com razão,
«Porque morres?» dissera, respondera:
«Mouro porque é tão bela
que inda não sou pera morrer por ela».

E se porventura,
Dama, vos ofendesse,
escrevendo de vós o que não sento,
e vossa fermosura
tão baixo não descesse
que a alcançasse um baixo entendimento,
seria o fundamento
daquilo que cantasse
todo de puro amor,
por que vosso louvor
em figura de mágoas se mostrasse.
E onde se julgasse
a causa pelo efeito, minha dor
diria ali sem medo:
«quem me sentir verá de quem procedo».

Então amostraria
os olhos saudosos,
o suspirar que a alma traz consigo,
a fingida alegria,
os passos vagarosos,
o falar, o esquecer-me do que digo;
um pelejar comigo,
e logo desculpar-me;
um recear, ousando;
andar meu bem buscando,
e de poder achá-lo acovardar-me;
enfim, averiguar-me
que o fim de tudo quanto estou falando
são lágrimas e amores;
são vossas isenções e minhas dores.

Mas quem terá, Senhora,
palavras com que iguale
com vossa fermosura minha pena;
que em doce voz de fora
aquela glória fale
que dentro na minh' alma Amor ordena?
Não pode tão pequena
força de engenho humano
com carga tão pesada,
se não for ajudada
dum piadoso olhar, dum doce engano
que, fazendo-me o dano
tão deleitoso e a dor tão moderada,
que enfim se convertesse
nos gostos dos louvores que escrevesse.

Canção, não digas mais; e se teus versos
à pena vêm pequenos,
não queiram de ti mais, que dirás menos.

Luís de Camões

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Amor é fogo que arde sem se ver

Amor é fogo que arde sem se ver;
É ferida que dói e não se sente;
É um contentamento descontente;
É dor que desatina sem doer;

É um não querer mais que bem querer;
É solitário andar por entre a gente;
É nunca contentar-se de contente;
É cuidar que se ganha em se perder;

É querer estar preso por vontade;
É servir a quem vence, o vencedor;
É ter com quem nos mata lealdade.

Mas como causar pode seu favor
Nos corações humanos amizade,
Se tão contrário a si é o mesmo Amor?

Luís de Camões

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Aquela triste e leda madrugada

Aquela triste e leda madrugada,
Cheia toda de mágoa e de piedade,
Enquanto houver no mundo saudade,
Quero que seja sempre celebrada.

Ela só, quando amena e marchetada
Saía, dando à terra claridade,
Viu apartar-se de uma outra vontade,
Que nunca poderá ver-se apartada.

Ela só viu as lágrimas em fio,
Que de uns e de outros olhos derivadas,
Juntando-se, formaram largo rio.

Ela ouviu as palavras magoadas
Que puderam tornar o fogo frio
E dar descanso às almas condenadas

Luís de Camões

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Olhos em que estão mil flores


Olhos em que estão mil flores
e com tanta graça olhais,
que parece que os Amores
moram onde vós morais.


Vêm-se rosas e boninas,
olhos, nesse vosso ver;
vêm-se mil almas arder
no fogo dessas mininas.
E di-lo hão minhas dores,
meus suspiros, e meus ais;
e dirão mais, que os Amores
moram onde vós morais.

Luís de Camões

Recolha de José Augusto Gaspar

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O tempo acaba o ano, o mês e a hora

O tempo acaba o ano, o mês e a hora,
A força, a arte, a manha, a fortaleza;
O tempo acaba a fama e a riqueza,
O tempo o mesmo tempo de si chora;

O tempo busca e acaba o onde mora
Qualquer ingratidão, qualquer dureza;
Mas não pode acabar minha tristeza,
Enquanto não quiserdes vós, Senhora.

O tempo o claro dia torna escuro
E o mais ledo prazer em choro triste;
O tempo, a tempestade em grão bonança.

Mas de abrandar o tempo estou seguro
O peito de diamante, onde consiste
A pena e o prazer desta esperança.

Luís de Camões

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Está o lascivo e doce passarinho

Está o lascivo e doce passarinho
Com o biquinho as penas ordenando,
O verso sem medida, alegre e brando,
Despedindo no rústico raminho.

O cruel caçador, que do caminho
Se vem calado e manso desviando,
Com pronta vista a seta endireitando,
Lhe dá no Estígio Lago eterno ninho.

Desta arte o coração, que livre andava,
(Posto que já de longe destinado)
Onde menos temia, foi ferido.

Porque o Frecheiro cego me esperava,
Para que me tomasse descuidado,
Em vossos claros olhos escondido.

Luís de Camões

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Lembranças, que lembrais meu bem passado

Lembranças, que lembrais meu bem passado,
Pera que sinta mais o mal presente,
Deixai-me, se quereis, viver contente,
Não me deixeis morrer em tal estado.

Mas se também de tudo está ordenado
Viver, como se vê, tão descontente,
Venha, se vier, o bem por acidente,
E dê a morte fim a meu cuidado.

Que muito melhor é perder a vida,
Perdendo-se as lembranças da memória,
Pois fazem tanto dano ao pensamento.

Assim que nada perde quem perdida
A esperança traz de sua glória,
Se esta vida há-de ser sempre em tormento.

Luís de Camões

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Que me quereis, perpétuas saudades?

Que me quereis, perpétuas saudades?
Com que esperança inda me enganais?
Que o tempo que se vai não torna mais,
E se torna, não tornam as idades.

Razão é já, ó anos, que vos vades,
Porque estes tão ligeiros que passais,
Nem todos pera um gosto são iguais,
Nem sempre são conformes as vontades.

Aquilo a que já quis é tão mudado,
Que quase é outra cousa, porque os dias
Têm o primeiro gosto já danado.

Esperanças de novas alegrias
Não mas deixa a Fortuna e o Tempo errado,
Que do contentamento são espias.

Luís de Camões

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Somente se Queixa de Amorosas Esquivanças


Ditoso seja aquele que somente
Se queixa de amorosas esquivanças;
Pois por elas não perde as esperanças
De poder nalgum tempo ser contente.

Ditoso seja quem estando ausente
Não sente mais que a pena das lembranças;
Porquinha que se tema de mudanças,
Menos se teme a dor quando se sente.

Ditoso seja, enfim, qualquer estado,
Onde enganos, desprezos e isenção
Trazem um coração atormentado.

Mas triste quem se sente magoado
De erros em que não pode haver perdão
Sem ficar na alma a mágoa do pecado.

Luís de Camões

Recolha de Jorge Silva

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Onde acharei lugar tão apartado

Onde acharei lugar tão apartado
E tão isento em tudo da ventura,
Que, não digo eu de humana criatura,
Mas nem de feras seja frequentado?

Algum bosque medonho e carregado,
Ou selva solitária, triste e escura,
Sem fonte clara ou plácida verdura,
Enfim, lugar conforme a meu cuidado?

Porque ali, nas entranhas dos penedos,
Em vida morto, sepultado em vida,
Me queixe copiosa e livremente;

Que, pois a minha pena é sem medida,
Ali triste serei em dias ledos
E dias tristes me farão contente.

Luís de Camões

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Quem pode livre ser, gentil Senhora

Quem pode livre ser, gentil Senhora,
Vendo-vos com juízo sossegado,
Se o Menino que de olhos é privado
Nas meninas de vossos olhos mora?

Ali manda, ali reina, ali namora,
Ali vive das gentes venerado;
Que o vivo lume e o rosto delicado
Imagens são nas quais o Amor se adora.

Quem vê que em branca neve nascem rosas
Que fios crespos de ouro vão cercando,
Se por entre esta luz a vista passa,

Raios de ouro verá, que as duvidosas
Almas estão no peito trespassando
Assim como um cristal o Sol trespassa.

Luís de Camões

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No mundo quis o Tempo que se achasse

No mundo quis o Tempo que se achasse
O bem que por acerto ou sorte vinha;
E, por exprimentar que dita tinha,
Quis que a Fortuna em mim se exprimentasse.

Mas por que meu destino me mostrasse
Que nem ter esperanças me convinha,
Nunca nesta tão longa vida minha
Cousa me deixou ver que desejasse.

Mudando andei costume, terra e estado,
Por ver se se mudava a sorte dura;
A vida pus nas mãos de um leve lenho.

Mas, segundo o que o Céu me tem mostrado,
Já sei que deste meu buscar ventura
Achado tenho já que não a tenho.

Luís de Camões

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No tempo que de amor viver soía*

No tempo que de amor viver soía,
Nem sempre andava ao remo ferrolhado;
Antes agora livre, agora atado,
Em várias flamas variamente ardia.

Que ardesse n'um só fogo não queria
O Céu porque tivesse experimentado
Que nem mudar as causas ao cuidado
Mudança na ventura me faria.

E se algum pouco tempo andava isento,
Foi como quem co'o peso descansou
Por tornar a cansar com mais alento.

Louvado seja Amor em meu tormento,
Pois para passatempo seu tomou
Este meu tão cansado sofrimento!

Luís de Camões

*Soía: era costume

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Perdigão perdeu a pena

Perdigão perdeu a pena
Não há mal que lhe não venha.


Perdigão que o pensamento
Subiu a um alto lugar,
Perde a pena do voar,
Ganha a pena do tormento.
Não tem no ar nem no vento
Asas com que se sustenha:
Não há mal que lhe não venha.

Quis voar a u~a alta torre,
Mas achou-se desasado;
E, vendo-se depenado,
De puro penado morre.
Se a queixumes se socorre,
Lança no fogo mais lenha:
Não há mal que lhe não venha.

Luís de Camões



Recolha de Manuel Mendes

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Lembranças saudosas, se cuidais

Lembranças saudosas, se cuidais
De me acabar a vida neste estado,
Não vivo com meu mal tão enganado,
Que não espere dele muito mais.

De longo tempo já me costumais
A viver de algum bem desesperado:
Já tenho co'a Fortuna concertado
De sofrer os tormentos que me dais.

Atada ao remo tenho a paciência
Para quantos desgostos der a vida;
Cuide quanto quiser o pensamento.

Que pois não posso ter mais resistência
Para tão dura queda, de subida,
Aparar-lhe-ei debaixo o sofrimento.

Luís de Camões

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Com grandes esperanças já cantei


Com grandes esperanças já cantei,
com que os deuses no Olimpo conquistara;
despois vim a chorar, porque cantara;
e agora choro já, porque chorei.

Se cuido nas passadas que já dei,
custa-me esta lembrança só tão cara
que a dor de ver as mágoas, que passara,
tenho pola mor mágoa, que passei.

Pois logo, se está claro que um tormento
dá causa que outro n'alma se acrescente,
já nunca posso ter contentamento.

Mas esta fantasia se me mente?
Oh! ocioso e cego pensamento!
Ainda eu imagino em ser contente!

Luís de Camões

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Tanto de meu estado me acho incerto

Tanto de meu estado me acho incerto,
Que em vivo ardor tremendo estou de frio;
Sem causa, juntamente choro e rio;
O mundo todo abarco e nada aperto.

É tudo quanto sinto um desconcerto;
Da alma um fogo me sai, da vista um rio;
Agora espero, agora desconfio,
Agora desvario, agora acerto.

Estando em terra, chego ao Céu voando;
Nu~a hora acho mil anos, e é de jeito
Que em mil anos não posso achar u~a hora.

Se me pergunta alguém porque assim ando,
Respondo que não sei; porém suspeito
Que só porque vos vi, minha Senhora.

Luís de Camões

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Se tanta pena tenho merecida

Se tanta pena tenho merecida
Em pago de sofrer tantas durezas,
Provai, Senhora, em mim vossas cruezas,
Que aqui tendes u~a alma oferecida.

Nela experimentai, se sois servida,
Desprezos, desfavores e asperezas,
Que mores sofrimentos e firmezas
Sustentarei na guerra desta vida.

Mas contra vosso olhos quais serão?
Forçado é que tudo se lhe renda,
Mas porei por escudo o coração.

Porque, em tão dura e áspera contenda,
Fé bem que, pois não acho defensão,
Com me meter nas lanças me defenda.

Luís de Camões

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Esparsa

Ao desconcerto do Mundo

Os bons vi sempre passar
No Mundo graves tormentos;
E pera mais me espantar,
Os maus vi sempre nadar
Em mar de contentamentos.

Cuidando alcançar assim
O bem tão mal ordenado,
Fui mau, mas fui castigado.
Assim que, só pera mim,
Anda o Mundo concertado.

Luís de Camões

Recolha de Sílvia Moreira

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Amor, co'a esperança já perdida

Amor, co'a esperança já perdida
Teu soberano templo visitei;
Por sinal do naufrágio que passei,
Em lugar dos vestidos, pus a vida.

Que mais queres de mim, pois destruída
Me tens a glória toda que alcancei?
Não cuides de render-me, que não sei
Tornar a entrar onde não há saída.

Vês aqui vida, alma e esperança,
Doces despojos de meu bem passado,
Enquanto o quis aquela que eu adoro.

Nelas podes tomar de mim vingança;
E se te queres ainda mais vingado,
Contenta-te co'as lágrimas que choro.

Luís de Camões

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Do Tempo que Fui Livre me Arrependo


O culto divinal se celebrava
No templo donde toda criatura
Louva o Feitor divino, que a feitura
Com seu sagrado sangue restaurava.

Amor ali, que o tempo me aguardava
Onde a vontade tinha mais segura,
Com uma rara e angélica figura
A vista da razão me salteava.

Eu crendo que o lugar me defendia
De seu livre costume, não sabendo
Que nenhum confiado lhe fugia,

Deixei-me cativar; mas hoje vendo,
Senhora, que por vosso me queria,
Do tempo que fui livre me arrependo.


Luís de Camões

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Num bosque, que das Ninfas se habitava

Num bosque, que das Ninfas se habitava,
Sibela, Ninfa linda, andava um dia;
E subida nũa árvore sombria,
As amarelas flores apanhava.

Cupido, que ali sempre costumava
A vir passar a sesta à sombra fria,
Num ramo arco e setas, que trazia,
Antes que adormecesse, pendurava.

A Ninfa, como idóneo tempo vira
Para tamanha empresa, não dilata;
Mas com as armas foge ao moço esquivo.

As setas traz nos olhos, com que tira.
Ó pastores! fugi, que a todos mata,
Senão a mim, que de matar-me vivo.

Luís de Camões

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Se somente hora alguma em vós piedade

Se somente hora alguma em vós piedade
De tão longo tormento se sentira,
Amor sofrera, mal que eu me partira
De vossos olhos, minha saudade.

Apartei-me de vós, mas a vontade,
Que por o natural na alma vos tira,
Me faz crer que esta ausência é de mentira;
Porém venho a provar que é de verdade.

Ir-me-ei, Senhora; e neste apartamento
Lágrimas tristes tomarão vingança
Nos olhos de quem fostes mantimento.

Desta arte darei vida a meu tormento,
Que, enfim, cá me achará minha lembrança
Sepultado no vosso esquecimento.

Luís de Camões

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Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades

Mudam-se os tempos, mudam-se as vontades,
Muda-se o ser, muda-se a confiança;
Todo o mundo é composto de mudança,
Tomando sempre novas qualidades.

Continuamente vemos novidades,
Diferentes em tudo da esperança;
Do mal ficam as mágoas na lembrança,
E do bem, se algum houve, as saudades.

O tempo cobre o chão de verde manto,
Que já coberto foi de neve fria,
E em mim converte em choro o doce canto.

E, afora este mudar-se cada dia,
Outra mudança faz de mor espanto:
Que não se muda já como soía.

Luís de Camões


Recolha de Sidónio Augusto Vieira

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Endechas a Bárbara escrava


Aquela cativa
Que me tem cativo,
Porque nela vivo
Já não quer que viva.
Eu nunca vi rosa
Em suaves molhos,
Que pera meus olhos
Fosse mais fermosa.

Nem no campo flores,
Nem no céu estrelas
Me parecem belas
Como os meus amores.
Rosto singular,
Olhos sossegados,
Pretos e cansados,
Mas não de matar.

U~a graça viva,
Que neles lhe mora,
Pera ser senhora
De quem é cativa.
Pretos os cabelos,
Onde o povo vão
Perde opinião
Que os louros são belos.

Pretidão de Amor,
Tão doce a figura,
Que a neve lhe jura
Que trocara a cor.
Leda mansidão,
Que o siso acompanha;
Bem parece estranha,
Mas bárbara não.

Presença serena
Que a tormenta amansa;
Nela, enfim, descansa
Toda a minha pena.
Esta é a cativa
Que me tem cativo;
E. pois nela vivo,
É força que viva.

Luís de Camões

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Nunca em amor danou o atrevimento

Nunca em amor danou o atrevimento;
Favorece a Fortuna a ousadia;
Porque sempre a encolhida cobardia
De pedra serve ao livre pensamento.

Quem se eleva ao sublime Firmamento,
A Estrela nele encontra que lhe é guia;
Que o bem que encerra em si a fantasia,
São u~as ilusões que leva o vento.

Abrir-se devem passos à ventura;
Sem si próprio ninguém será ditoso;
Os princípios somente a Sorte os move.

Atrever-se é valor e não loucura;
Perderá por cobarde o venturoso
Que vos vê, se os temores não remove.

Luís de Camões

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Doces lembranças da passada glória

Doces lembranças da passada glória,
Que me tirou fortuna roubadora,
Deixai-me descansar em paz uma hora,
Que comigo ganhais pouca vitória.

Impressa tenho na alma larga história
Deste passado bem, que nunca fora;
Ou fora, e não passara: mas já agora
Em mim não pode haver mais que a memória.

Vivo em lembranças, morro de esquecido
De quem sempre devera ser lembrado,
Se lhe lembrara estado tão contente.

Oh quem tornar pudera a ser nascido!
Soubera-me lograr do bem passado,
Se conhecer soubera o mal presente.

Luís de Camões

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Depois que quis Amor que eu só passasse


Depois que quis Amor que eu só passasse
Quanto mal já por muitos repartiu,
Entregou-me à Fortuna, porque viu
Que não tinha mais mal que em mim mostrasse.

Ela, porque do Amor se avantajasse
Na pena a que ele só me reduziu,
O que para ninguém se consentiu,
Para mim consentiu que se inventasse.

Eis-me aqui vou com vário som gritando,
Copioso exemplário para a gente
Que destes dois tiranos é sujeita;

Desvarios em versos concertando.
Triste quem seu descanso tanto estreita,
Que deste tão pequeno está contente!

Luís de Camões

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Julga-me a gente toda por perdido

Julga-me a gente toda por perdido,
Vendo-me tão entregue a meu cuidado,
Andar sempre dos homens apartado
E dos tratos humanos esquecido.

Mas eu, que tenho o mundo conhecido,
E quase que sobre ele ando dobrado,
Tenho por baixo, rústico, enganado
Quem não é com meu mal engrandecido.

Vá revolvendo a terra, o mar e o vento,
Busque riquezas, honras a outra gente,
Vencendo ferro, fogo, frio e calma;

Que eu só em humilde estado me contento
De trazer esculpido eternamente
Vosso fermoso gesto dentro na alma.

Luís de Camões


Recolha de Arnaldina Moreira